Foi difícil ler a reportagem da Revista Piauí sobre o assédio sexual que Dani Calabresa e outras funcionárias da Globo sofreram. Precisei parar três vezes durante a leitura. Doloroso. O nível de detalhamento das situações me levou a rememorar histórias da minha vida. Tive que parar.
Refleti também sobre o fetiche colonial dos veículos de comunicação na descrição dos fatos que reafirmam o gozo de violadores e agressores e fazem vítimas reviverem, uma vez mais, as violências. Durante as pausas na leitura, pensei que a vida das mulheres é um eterno gatilho de violências que sofremos ao longo de nossas trajetórias. Isso não pode ser naturalizado, fetichizado ou capitalizado.
O silenciamento das organizações Globo, assim como acontece em inúmeras empresas, fala muito alto.
Os protocolos impõem que as vítimas sejam questionadas e colocadas em um tribunal ilegal que julga suas roupas, suas escolhas, sua orientação sexual, sua raça, seu modo de falar ou andar. O acusado, Marcius Melhem, já anunciou que processará tanto a advogada como a própria Dani Calabresa, numa evidente tentativa de intimidação.
Todas nós sabemos que a justiça favorece aos homens brancos, ainda mais aos que são ricos e influentes. Desta forma, o sistema penal cerceia e invalida os depoimentos e as falas das mulheres; e encarcera homens negros.
Diante de um escândalo de proporção nacional que aconteceu com uma atriz branca, famosa e rica, podemos imaginar quantas mulheres pobres não têm a mesma condição de denunciar casos de assédio sexual e moral.
Quais os corpos que são notificados e lembrados pela mídia?
Outro fato que me incomodou profundamente foi a substituição do sindicato por um “compliance” privado. Fui no tradutor e sua definição é “estar em conformidade com”. Em termos de cultura organizacional das empresas, isso significa “cumprir e observar rigorosamente a legislação à qual se submete e aplicar princípios éticos nas tomadas de decisões de gestores”.
De acordo com a reportagem da Piauí, existe dentro da Globo um setor de “compliance” que recebeu as denúncias e produziu relatórios sem qualquer efetividade. De outro lado, foi contratada uma consultoria privada especializada em “compliance” de gênero, com o objetivo de representar as vítimas.
Importante ressaltarmos que assédio sexual não é algo que acontece individualmente e que resulta apenas em ações pontuais.
Para além de resoluções sobre demissões e demais desdobramentos, é preciso enfrentar o debate de gênero e classe nas empresas de comunicação a partir de uma organização coletiva. Afinal, quem tem dinheiro para pagar um tal de “compliance” privado para supostamente garantir seus direitos individuais?
Porque, sim, pode haver resolução individual, mas não haverá mudanças estruturais que sejam implementadas para todas as pessoas que trabalham naquela empresa. A contratação de compliance de gênero reafirma a desigualdade de classe.
Atualmente, muitos acordos e convenções coletivas negociadas pelos sindicatos já preveem cláusulas de gênero e raça que, inclusive, primam pela proteção à vítima. Ademais, instâncias como ouvidorias têm representantes dos sindicatos em sua composição, justamente para garantir a defesa dos interesses de todas as trabalhadoras.
Precisamos identificar como essas estruturas, como a de “compliance”, apaga a luta de classes, agindo na emergência, no chamado “click bait”, sem reflexão, sem identificação de matriz de classe e sem organização política coletiva.
Muitas empresas adotam um discurso supostamente feminista na construção de sua imagem pública, mas não agem de acordo com esses princípios em seus cotidianos e espaços de trabalho. Pelo contrário, usam nossas pautas como lucro e em momento de denúncia passam pano para os agressores e soltam nossas mãos.
Até porque o capitalismo está aí para moer nossos corpos de todas as formas.
Nós, mulheres, precisamos nos organizar coletivamente também nos sindicatos que, por sua vez, devem ser espaços acolhedores para todas, não apenas para aquelas que estão no trabalho formal como também para as que atuam na informalidade e estão no desemprego.
Isso significa criar coletivos de mulheres nas instâncias dos sindicatos e no caso das organizações Globo, coletivos de mulheres jornalistas, radialistas, técnicas, artistas, iluminadoras, câmeras, e tantas outras. Sindicato é para lutar e para a gente se organizar. Nenhuma de nós a menos.
*Camila Marins é jornalista e uma das editoras da Revista Brejeiras. Também foi diretora do Sindicato dos Jornalistas Profissionais do Município do Rio de Janeiro.
Edição: Mariana Pitasse