Quando a linha de fronteira decide se as mulheres sobrevivem ou não ao aborto

Diário Carioca

Camila* tinha 17 anos quando engravidou do namorado. Com medo e vergonha, contou somente para a mãe, que a ajudou a realizar um aborto clandestino. A menina, que havia iniciado a vida sexual aos 14 anos e só tinha conversado com amigas sobre métodos contraceptivos, foi levada até uma clínica onde realizou o procedimento. 

Moradora de Boa Vista, em Roraima, ela não teve acesso ao aborto legal, seguro e gratuito no Sistema Único de Saúde (SUS) do Brasil. A situação seria outra se ela vivesse a alguns quilômetros de casa, na Guiana, onde o aborto é legalizado. 

Ela conta que o namorado nunca soube da gravidez e que teve sorte da família ter condições de pagar um procedimento em uma clínica que consideravam segura. O procedimento, muito caro, foi uma prioridade naquele momento. 

A adolescente não teve nenhum problema físico de saúde após a realização do aborto, mas as marcas psicológicas a acompanham até hoje, 15 anos depois. A culpa e o medo do julgamento não saíam da cabeça de Camila, que ainda era menor de idade.

Cabide, lâminas e hemorragias

A experiência de Camila foi bem diferente da maioria das mulheres que realizam aborto ilegal no Brasil. Em espaços precários espalhados pelo país, milhares de mulheres passam por técnicas de retirada do feto com cabide, lâminas, medicação e sangramentos que podem virar hemorragias. 

No Brasil, o aborto legal é permitido apenas em três situações: gravidez decorrente de um estupro, risco à vida da gestante e anencefalia do feto. Com uma política atrasada e misógina em relação à outros países, a legislação brasileira acaba empurrando milhares de mulheres para o aborto clandestino.

:: Entenda o que significa legalizar o aborto no Brasil ::

A realidade de abandono estatal vivenciada pelas mulheres brasileiras não faz parte do cotidiano de mulheres que vivem bem próximas de nós, como as da Guiana, que faz fronteira com o Brasil na região Norte do país.

Guiana é pioneira na América do Sul

A Guiana foi o primeiro país sul-americano a discutir a descriminalização do aborto, em 1971, após o Reino Unido aprovar o Abortion Act, em 1967, e é hoje um dos cinco países que permitem a interrupção voluntária da gravidez na América Latina.

Somado à ela estão Guiana Francesa, Porto Rico, Cuba e Uruguai. De forma municipal, o procedimento também é permitido na Cidade do México, mesmo que nacionalmente o aborto seja autorizado somente em casos de gestação decorrente de estupro.

O aborto foi legalizado na Guiana somente em 1995, permitindo a interrupção voluntária da gravidez até a 12ª semana. Depois disso, a mulher pode ter acesso ao aborto caso a gestação represente risco para sua saúde ou sua vida.

Dois lados da fronteira

Uma fronteira é uma linha física ou artificial que separa áreas geográficas, conhecidas por serem limites políticos e separarem países. Estar de certo lado desta fronteira pode ser determinante para a vida das mulheres.

No Brasil, as fronteiras são marcadas por rios, serras, lagos e linhas geodésicas, que correspondem às linhas traçadas no terreno tendo como referências as coordenadas geográficas: paralelos e meridianos. E essa marca física, que divide políticas, pode representar uma possibilidade de morte às 1.500 mulheres que realizam abortos diariamente no Brasil. 

Fazer um aborto induzido pode acarretar em detenção de um a três anos para a mulher que o pratica ou a quem dê permissão para que outra pessoa o faça. Neste último caso, a pessoa que realizou o procedimento pode pegar de um a quatro anos de prisão.

Camila conta que, caso se não tivesse realizado o aborto naquela época, não teria conseguido concluir os estudos e nem entrar na universidade. Hoje, ela tem o título de Mestra e um bom emprego. Com um filho indesejado para cuidar e criar, acredita que hoje não estaria na mesma posição. 




Mapa do aborto na América Latina / Fernando Bertolo/ Brasil de Fato

Realidade em Roraima: não tem um cházinho?

Essa é uma pergunta que Yolanda Simone Salomão Mêne, de 51 anos de idade, professora de biologia na rede estadual de Roraima, escuta com certa regularidade. Com alunos de 15 a 18 anos, ela explica que é comum que eles a procurem entre as aulas ou na saída da escola para falar sobre outros assuntos. Um deles é a interrupção de uma gravidez indesejada. 

Para Yolanda Mêne, muitos estudantes carregam dúvidas sobre educação sexual. “A escola não trabalha diretamente a educação sexual dentro da sala de aula”, avalia.

“Tem alguns conteúdos relacionados à educação sexual que são trabalhados na disciplina de biologia. Eu tento trabalhar de acordo com solicitação dos próprios alunos. Sempre no início do ano eu faço um debate com eles, pergunto quais temas eles querem que sejam inseridos no currículo e aí entra essa parte de educação sexual”, explica. 

:: Saiba em quais casos o aborto é um direito garantido no Brasil ::

Roraima é um estado conservador, e isso acaba interferindo na educação dos mais jovens, avalia a professora, que estima que 70% dos seus alunos sejam evangélicos ou de famílias evangélicas.

“Já teve vezes de eu debater com eles alguma coisa em sala de aula, por exemplo, sobre o sistema reprodutor masculino e feminino, e pai ou mãe ir reclamar ou solicitar à escola que não quer os filhos assistindo esse tipo de aula, porque, na visão deles, [abordar esses assuntos] é uma coisa indecente”.

A professora explica que já foi procurada diversas vezes pelas alunas, principalmente pelas mais novas, em casos de gravidez indesejada. Como se trata de menores de idade, Mêne orienta que procurem uma pessoa da família de confiança e busca encaminhá-las para auxílio psicológico da Secretaria de Educação. 

Um caso que marcou Yolanda Mêne foi o de uma aluna que realizou um aborto clandestino e teve uma hemorragia após o procedimento. Ela ficou sabendo apenas quando a mãe esteve na escola para avisar que a garota, menor de idade, não poderia comparecer às aulas nos próximos dias. A garota de 16 anos acabou tendo uma infecção que gerou a retirada do útero. 




Aborto clandestino / Janete Chargista

Conservadorismo como risco à vida das mulheres

“Roraima é um estado muito conservador e xenofóbico, fundamentalista e cheio de falso moralismo. Falar de aborto é difícil porque é uma pauta que não reverbera no meio político. Já o setor religioso fundamentalista se junta, como no restante do Brasil, para criminalizar as mulheres”, explica Nelita Frank, de 60 anos, militante feminista negra. 

Ela é uma das fundadoras do Núcleo de Mulheres de Roraima (NUMUR) e faz parte da Articulação de Mulheres Brasileiras (AMB). Criado em 1998, o NUMUR atua no entrentamento à violência contra as mulheres, pela legalização do aborto, pela democracia e na luta antiracista. 

Nelita Frank afirma que quando algum caso de aborto clandestino é veiculado na mídia de Roraima, a mulher pode ser identificada, pois o estado é composto por cidades pequenas. As manchetes revelam que a maioria das mulheres que recorrem ao aborto cladestino no estado são pobres, adultas, com baixo grau de instrução, com outros filhos e responsáveis por manter a renda da família. 

“As mulheres que realizam aborto no Brasil fazem isso sem qualquer rede de apoio. Elas se vêem acuadas na solidão gerada pelo medo de ser criminalizada, presa, julgada e perder os laços com família, parentes e amigos”, explica Nelita, que resume o aborto como um processo traumático e solitário.

“Houve casos de meninas que os procedimentos somente seriam realizados se tivesse uma demanda judicial para isso. E é muito doloroso porque, aqui na região Norte, as mulheres pobres, negras e jovens são as que mais sofrem com o aborto clandestino e acabam sendo as mais criminalizadas”.

A ativista explica que a falácia do Kit Gay, inventada antes da eleição de 2018, fez com que a educação sexual fosse considerada antiquada pelos pais conservadores. Não é possível mais se falar sobre gênero, misoginia e homofobia dentro das salas de aula e há certa resistência até aos conteúdos relacionados à reprodução humana, avalia. 

Para Nelita, ter discussões importantes silenciadas pelo negacionismo é um ataque às mulheres e ao direito à educação dos jovens. A militante reforça que muitas meninas que engravidam no estado ainda são muito jovens e deveriam ter o direito de viver a infância e adolescência.

“Engravidar ou não é um direito da mulher decidir. A gravidez não é o destino das mulheres. Há mulheres que desejam ter filhos, outras que não, mas todas precisam ser respeitadas”, pontua. “Ter um protocolo ajustado, um procedimento legal, seguro e gratuito faria com que os índices de mulheres que realizam abortos diminuíssem e, consequentemente, o índice de mulheres que morrem durante a prática também”, completa.

Aborto no Brasil 

Uma em cada cinco mulheres de até 40 anos no Brasil já abortou. O dado foi revelado pela Pesquisa Nacional do Aborto de 2016, realizada pelo Instituto de Bioética, Direitos Humanos e Gênero (ANIS). O estudo também mostrou que cerca de 503 mil mulheres entre 18 e 40 anos realizaram abortos em 2015. 

A organização estima que 4,7 milhões de mulheres entre 18 e 39 anos no Brasil já tenham feito um aborto ao menos uma vez na vida. Segundo o perfil encontrado pela pesquisa, 67% destas mulheres já têm filhos e 88% têm religião, sendo que 56% são católicas.

O DataSUS não possui um levantamento sobre abortos cladestinos no Brasil, mas é possível ter uma pequena amostragem através do número de mulheres atendidas em todo o país pelo Sistema Único de Saúde (SUS) em razão de abortos malsucedidos – tenham sido provocados ou espontâneos. 

Nos primeiros seis meses de 2020, a cada 80 abortos realizados no país, apenas um foi feito dentro da lei, segundo estimativa dos dados do DataSUS. Foram 1.024 procedimentos legais contra 80.948 curetagens e aspirações – processos necessários para limpeza do útero após um aborto incompleto realizado de forma clandestina.

Esses procedimentos podem estar relacionados com abortos espontâneos ou induzidos, mas a propabilidade mostra que na maioria esmagoda das vezes ele é realizado após práticas induzidas. 

O site Somos Todas Clandestinas reúne relatos de mulheres do país todo sobre aborto clandestino e as dificuldades enfrentadas por essas mulheres.



*Camila é um nome fictício 

Edição: Poliana Dallabrida


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