Indígenas Guarani e Kaiowá foram espancados com socos, chutes e coronhadas

Diário Carioca
Socos, pontapés, coronhadas e tiros com armas “tipo espingarda”. Foi assim que indígenas Guarani e Kaiowá do Tekoha Guaiviry, em Aral Moreira (MS), descreveram à polícia o ataque que sofreram no dia 16 de março por parte de três homens armados, que os abordaram durante a noite, enquanto voltavam para sua aldeia depois de terem ido a um comércio próximo. Duas das vítimas precisaram ser levadas ao hospital da cidade com lesões no rosto, cabeça e costelas, segundo o prontuário médico. Pelo menos uma delas chegou a desmaiar.

A Aty Guasu, Assembleia Geral dos Guarani e Kaiowá, atribui as agressões a funcionários da Fazenda Querência, localizada nos arredores do tekoha – “lugar onde se é”, em Guarani –, cuja área começou a ser ocupada pelos indígenas em 2011 e hoje abrange três propriedades rurais – a Querência não está entre elas, mas é contígua. Eles reivindicam a região como parte de seu território tradicional, de onde foram retirados na década de 1910 e transferidos para a Terra Indígena Amambai, criada pelo extinto Serviço de Proteção ao Índio (SPI) na cidade de mesmo nome. Em 2008, a Funai iniciou o processo de demarcação da terra indígena, mas sua tramitação está parada no órgão desde 2012, de acordo com um antropólogo que trabalhou na identificação do território.

Um dos donos da Fazenda Querência, Idelfino Maganha, é um velho conhecido dos Guarani e Kaiowá: em 2012, o Ministério Público Federal do Mato Grosso do Sul o denunciou, junto a outras 18 pessoas, pelo assassinato do cacique Nísio Gomes, então líder de Guaiviry, em novemebro 2011. Ele chegou a ser preso pelo crime, mas agora está em liberdade. À Agência Pública, a esposa de Idelfino, Marilene Lolli Ghetti Maganha, também proprietária da Fazenda Querência, disse que o agricultor “teve conhecimento dos fatos através da mídia e nega qualquer tipo de envolvimento no episódio”.

Um boletim de ocorrência sobre o ataque foi registrado na delegacia de Aral Moreira com base em relatório elaborado pelos policiais militares que atenderam o chamado. Durante visita ao local da agressão em 18 de março, a Polícia Civil encontrou “três cápsulas deflagradas de munição calibre 12”, segundo consta no BO. Indígenas ouvidos pela Pública dizem que essas balas partiram das armas dos agressores. Os depoimentos das três vítimas – duas maiores de idade e uma menor  – foram colhidos na delegacia no dia 19.

O Ministério Público Federal de Ponta Porã também acompanha o caso. A assessoria do órgão informou à reportagem que uma perícia foi realizada em Guaiviry entre os dias 23 e 25 de março, mas alegou não poder divulgar informações sobre as linhas de investigação adotadas até o momento.

O indígenas Guarani e Kaiowá atacados sofreram lesões no rosto, cabeça e costelas, segundo o prontuário médico

O medo tomou conta do tekoha

Nos depoimentos prestados à Polícia Civil, os três indígenas afirmaram que, no fim do dia em que o ataque ocorreu,  foram a uma loja localizada em um posto de gasolina desativado, distante cerca de 2km da aldeia. Na volta, foram abordados por três homens armados que chegaram em duas caminhonetes. Primeiro, eles teriam batido com as armas em uma das vítimas, e então teriam partido para a agressão da segunda. “Eles agrediram, torturaram, entortaram o braço dele, deram disparos de arma bem no ouvido dele, nos dois lados”, relata uma das lideranças do Tekoha Guaiviry, que pediu para não ser identificada por medo de novos episódios de violência.

A terceira vítima, a mais nova das três, conseguiu fugir antes de se tornar alvo dos agressores. “Ele viu que o carro saiu da Fazenda Querência, já correu para o sentido do nosso tekoha e parou a uns 60 metros, porque estava à noite, mas também atiraram no sentido dele”, narra a liderança. Essa versão coincide com as declarações coletadas pela Polícia Civil.

Um dos administradores da Fazenda Querência, Rosinei Durão, no entanto, conta uma história diferente. No relatório sobre a ocorrência, os policiais militares que foram a Guaiviry após o ataque escreveram que Durão “relatou que não presenciou nenhum indígena na fazenda e que não escutou nenhum som de disparo de arma de fogo.”

Desde 2016, os indígenas de Guaiviry não sofriam investidas como essa. A brutalidade da ação levou, mais uma vez, um clima de medo à comunidade. “Estavam com a cabeça toda estourada, com muito tiro perto do ouvido, [levaram] muitas batidas com a espingarda”, contou um representante da Aty Guasu que também pediu que sua identidade fosse protegida por temer represálias. “Para um deles, perguntaram se era irmão do Genito, filho do Nísio Gomes, que foi assassinado ali mesmo também”, adicionou.

Anderson Santos, advogado do Conselho Missionário Indigenista (Cimi) no Mato Grosso do Sul, que visitou Guaiviry depois do episódio, diz que as vítimas estavam com medo até de contar o que havia ocorrido. “Eles não estavam em condição de falar muita coisa, estavam machucados, estava difícil até pra caminhar”, relata. 

A polícia ainda não divulgou qual linha de investigação segue para apurar o episódio. Mas um representante da Aty Guasu sustenta que o objetivo do ataque foi político e intimidatório. “A gente insiste que não foi uma pessoa que não gosta de indígena que parou o carro no meio do nada e bateu no indígena. Não é isso. É um plano para fazer isso justamente para intimidar ou mesmo matar indígenas ali, para mostrar que eles estão voltando a agredir indígenas e intimidar”, argumenta.

Corpo de Nísio Gomes, assassinado em 2011, nunca foi encontrado

O acirramento dos ataques aos indígenas ganhou repercussão internacional quando, há dez anos, a principal liderança do tekoha Guaiviry foi assassinada. Em 18 de novembro de 2011, Nísio Gomes foi morto a tiros dias após a ocupação, pelos indígenas, de uma área da Fazenda Nova Aurora no primeiro dia daquele mês. Vizinhos do local, os fazendeiros Claudio Adelino Gali, Samuel Peloi e Idelfino Maganha são réus na ação penal que julga o assassinato. Além deles, o então presidente do sindicato rural de Aral Moreira Osvin Mittanck e os advogados Levi Palma e Dieter Michael Seyboth também foram apontados como mandantes do crime.

O cacique Nísio Gomes foi assassinado em 2011 a mando de fazendeiros, segundo o Ministério Público Federal

Segundo a denúncia do Ministério Público Federal do estado, após não conseguir convencer os indígenas, representados pelo cacique, a sair do território em troca de dinheiro, o “consórcio de fazendeiros” contratou uma empresa de segurança privada armada, a Gaspem, para promover a expulsão dos Guarani e Kaiowá.

A empresa era comandada pelo policial militar aposentado Aurelino Arce. O empresário mobilizou 12 pistoleiros da Gaspem para a emboscada, ainda segundo a denúncia do MP. Os homens da empresa de segurança invadiram o acampamento e abordaram aos gritos o cacique, que reagiu dando um golpe de machadinha no pé de um deles. Com o revide, o tiroteio teria começado e o cacique foi morto a tiros. Após o ocorrido, o corpo da liderança foi carregado em uma das duas caminhonetes S-10 que foram utilizadas na ação. 

Ao todo, o MPF acusou 19 pessoas envolvidas no assassinato da liderança, que respondem por crimes como homicídio qualificado, lesão corporal, ocultação de cadáver, porte ilegal de arma de fogo e formação de quadrilha. O caso corre na Vara Federal de Ponta Porã. Até hoje, o corpo de Nísio não foi encontrado.

Em 2018, o Tribunal Regional Federal da 3ª Região determinou o fechamento da empresa Gaspem, denunciada por diversos ataques a comunidades indígenas entre 2009 e 2011, entre eles o que terminou com o assassinato de Nísio. Constituída para “prestar segurança privada em imóveis urbanos, rurais e eventos”, a empresa recebia até R$ 30 mil para cada desocupação violenta, segundo o Ministério Público. 

A liderança dos Guarani e Kaiowá afirmam que, embora haja recuos momentâneos dos ataques físicos a Guiaviry, a intimidação e ameaças aos indígenas persistem. Em 2016, por exemplo, cinco anos após o assassinato de Nísio, pistoleiros atacaram novamente o local e dispararam ao menos 16 vezes contra o tekoha. Os tiros foram dados por homens que estavam em dois veículos Hilux de cor prata. Ninguém foi atingido. 

Na época, os indígenas também atribuíram os ataques a funcionários da fazenda Querência e anunciaram que novos ataques poderiam ocorrer. Segundo as lideranças locais, cerca de 20 dias antes desse episódio, outro carro com homens armados apareceu na área, fazendo ameaças e perguntando pelo nome de lideranças da comunidade.

“É uma área de conflito permanente”, diz o representante da Aty Guasu entrevistado pela reportagem. “Os fazendeiros querem tirar a qualquer custo os indígenas dali. E os indígenas insistem em permanecer ali e exigem a demarcação. A briga é pela posse da terra mesmo.” 

Demarcação da terra está parada na Funai

Antes de ocupar parte da Fazenda Nova Aurora em 1º novembro de 2011, os Guarani e Kaiowá já haviam feito duas tentativas de retomada da área que reivindicam enquanto território tradicional. Uma delas aconteceu em 2004, e a outra, em 2005, mas eles foram retirados do local nas duas ocasiões. 

Uma década depois, em junho de 2015, para protestar contra uma decisão judicial no processo relativo ao assassinato de Nísio Gomes, a comunidade ocupou mais duas fazendas da região: a Três Poderes e a Água Branca, esta última também de propriedade de Idelfino e Marilene Maganha. Os Maganha e o dono do segundo imóvel entraram na Justiça com pedidos de reintegração de posse.

Apesar das intimidações constantes, a comunidade de Guaiviry segue vivendo na área que abrange as três fazendas – Nova Aurora, Três Poderes e Água Branca – e aguarda há anos a sua demarcação, formalmente iniciada em 2008. Naquele ano, a Funai criou um grupo técnico que estudaria a região de ocupação tradicional dos Guarani e Kaiowá, denominada Tekoha Guasu Guaivyry-Joyvy. O relatório de identificação do território foi elaborado e entregue ao órgão em 2012, segundo o antropólogo Vinícius José Santos, que integrou o grupo. No entanto, até agora a Funai não finalizou o procedimento. A Pública questionou o órgão sobre o andamento do processo, mas não obteve resposta até a publicação desta reportagem.

“No processo de demarcação de terras, o procedimento manda que a Funai leia esse relatório e o aprove. Quem faz isso é o presidente da Funai, só que desde 2016 [ano de início do governo Temer] não há vontade política de fazer com que aquela área seja demarcada”, diz Vinícius José Santos, antropólogo que integrou o grupo técnico. Ele explica que, muito antes de iniciarem as tentativas de retomada, os indígenas já procuravam as autoridades pedindo o reconhecimento da área. “Tem documentos protocolados em 1999 que demonstram a intenção deles de retomar aquele espaço de ocupação tradicional.”

Para a liderança da Aty Guasu ouvida pela reportagem, a morosidade do processo incentiva ataques à comunidade e deixa os indígenas em situação de vulnerabilidade. “Não aconteceu mais nenhum avanço da demarcação, e isso possibilita, sim, aumentar conflito porque o fazendeiro quer aproveitar e tirar os indígenas, matar de novo as lideranças. Os ataques estavam parados, e agora recomeçam”, afirma.

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Equipe de jornalistas, colaboradores e estagiários do Jornal DC - Diário Carioca