RAY CUNHA, BRASÍLIA, 14-04-2021 – Eu chorei ao fim da biografia de Nelson Rodrigues, O Anjo Pornográfico (Companhia das Letras, 1992, São Paulo, 457 páginas), de Ruy Castro. Ruy encerrou-a com uma curta e definitiva crônica de Natal que Nelson escreveu para O Globo, intitulada A vigília dos pastores. “Como se orasse pelo momento de subir ao céu, o anjo pornográfico dizia”:
Escrevo à noite. Vem da aragem noturna um cheiro de estrelas. E, súbito, eu descubro que estou fazendo a vigília dos pastores. Aí está o grande mistério. A vida do homem é essa vigília e nós somos eternamente os pastores. Não importa que o mundo esteja adormecido. O sonho faz quarto ao sono. E esse diáfano velório é toda a nossa vida. O homem vive e sobrevive porque espera o Messias. Neste momento, por toda parte, onde quer que exista uma noite, lá estarão os pastores – na vigília docemente infinita. Uma noite, Ele virá. Com suas sandálias de silêncio entrará no quarto da nossa agonia. Entenderá nossa última lágrima de vida.
A vontade que me deu foi de que naquela manhã de 21 de dezembro de 1980, aos 68 anos de idade, Nelson não houvesse morrido ainda. Quando morei no Rio, em 1972, se eu soubesse o que sei hoje sobre Nelson teria ido atrás dele, teria feito vigília até ele me receber, só para pedir a ele que conversasse um pouco comigo, de vez em quando, para saber mais sobre as sendas, às vezes noturnas e sem estrelas, do ato de escrever.
A vida de Nelson Rodrigues é inacreditável. Nas mãos de Ruy Castro, então, se tornou um romance espetacular. Imagino uma cinebiografia de Nelson, nas mãos de um Francis Ford Coppola, ou de um Steven Spielberg, com Rodrigo Santoro fazendo o papel de Nelson!
O biografado pode ser quem for, até um Ernest Hemingway, se o biógrafo for um burocrata a biografia ficará igual o diário de uma beata, mesmo que a beata resolva contar o que ela faz com o padre. Também pode acontecer de o biografado ser um artista genial, mas ter levado a vida de dono de casa, como marido obediente de mulher mandona, mas o biógrafo é extraordinário e faz da biografia um romance intimista de arrepiar os cabelos.
No caso de Nelson, o biografado era um gênio, um desses brasileiros gigantes, e o biógrafo é um desses jornalistas que de tão bons logo viram ensaísta e daí para ficcionista é um passo. E no caso dos dois, ambos são jornalistas de primeira categoria e cariocas.
Nelson Rodrigues nasceu no Recife, em uma das famílias pernambucanas mais geniais, naquele estado de gênios, e foi para o Rio de Janeiro aos 4 anos de idade, quando nasceu de novo, agora, carioca. Quanto a Ruy Castro, é da República de Minas Gerais, e, como tantos outros mineiros, como Carlos Drummond de Andrade, fez do Rio sua primeira cidade. Nelson era um dos cariocas que mais entendem de Rio de Janeiro e Ruy Castro, no vigor dos 73 anos, é um dos grandes conhecedores da alma carioca.
O Anjo Pornográfico é uma múltipla biografia. Conta um pouco a história recente da intelectualidade pernambucana, a história da modernização da imprensa carioca, incluindo a TV Globo, revolução que saiu da cabeça e das mãos dos Rodrigues, a história do futebol brasileiro e a história do moderno teatro brasileiro, já que Nelson Rodrigues foi o maior dramaturgo destas terras.
A vida do pai de Nelson, Mário Rodrigues, um dos criadores do jornalismo moderno brasileiro, a vida de Mário Filho, que dá nome ao Maracanã, os irmãos de Nelson, inesgotáveis jornalistas e escritores, e a inacreditável vida de Nelson, criam, no leitor de O Anjo Pornográfico, dois sentimentos antagônicos, que sufocam e obrigam a que se leia o livro como em curtos rounds.
Não queremos largar o livro, mas somos obrigados a larga-lo, para respirar e pensar um pouco, tomar água, ir à sacada, para voltar ao combate, porque é como um combate, que nos deixa sem fôlego, mas querendo mais, como, pode-se até comparar, se estivéssemos trabalhando uma dessas mulheres que são só ação, suor e cheiros!
E há vários outros contrapontos, como a intrigante vida sexual de Nelson com gatinhas da nata carioca, apesar de que ele se vestia mal, era um matuto carioca e tuberculoso, mas mesmo velho e acabado atraía mariposas que podiam ser suas netas.
Além disso, como disse, Ruy Castro conhece o Rio como todos seus grandes cronistas, pois sem a sensibilidade dos grandes artistas jamais se pode conhecer de fato uma cidade, porque as cidades são como as mulheres, e os segredos das mulheres são infinitos. Devemos nos dar por felizes se podemos ofertar rosas para a madrugada e elas, as rosas, se abrirem como as manhãs ensolaradas de agosto em Copacabana.
Ruy desnuda o Rio de Nelson Rodrigues como o sátiro a ninfeta, e assim, quando Nelson está batendo papo com seus amigos em um café, sentimos o cheiro do café, os sons da rua, a sensualidade do mar