Fogo no Coração capitulo 4

Redacao

    Ricardo Larroyed chegou à clínica às 10h30, foi à sua sala, lavou as mãos, vestiu o jaleco e foi para o ambulatório. Entrou no extenso hall do salão e se dirigiu para a única baia iluminada, que era onde Emanoel Vorcaro estava atendendo Rosa Nolasco; abriu a cortina e engoliu em seco, quedando-se estático. À sua frente flutuava a miragem nua de uma deusa, o fogo da cascata dos cabelos e dos pelos pubianos ardiam, especialmente no coração. O tempo parara na baia, no ambulatório, na clínica, no cosmos. Só se ouvia o silêncio, e, dentro dele, no embalo do seu coração, a respiração da paciente, preenchendo tudo, como o éter. Emanoel Vorcaro, movendo-se em torno da miragem, lembrava astronauta na Lua. Ele e Ricardo Larroyed haviam desenvolvido a comunicação pelo olhar; olharam-se. O silêncio durou uma eternidade, até que Vorcaro quebrou-o, apresentando seu colega a Rosa Nolasco. Ela sorriu, como as rosas devem sorrir se pudéssemos vê-las assim. Hipnotizado, Larroyed tomou-lhe ambos os pulsos simultaneamente e auscultou-os. Aperfeiçoara a técnica da pulsologia ao requinte com um dos mais brilhantes mestres em medicina tradicional chinesa que conhecera, Jorge Bessa, escritor, pesquisador, alquimista, astrólogo, graduado em Medicina Tradicional Chinesa pelo Instituto Superior de Medicinas Tradicionales de Barcelona, Espanha, homeopata, fitoterapeuta, iridólogo e chefe de cozinha. Há muito que Marcelo Quintela tentava levá-lo para o Instituto Holístico, mas Jorge Bessa era um cidadão do mundo, tratava de potentados nos Estados Unidos e Europa, funcionários da cúpula dos três poderes e bilionários brasileiros, a miseráveis e desgraçados de todos os matizes. Logo depois que Lula Rousseff assumiu a presidência da República, em 1 de janeiro de 2003, Jorge Bessa foi sondado para tratar o criador do Partido dos Trabalhadores (PT). Ele pediu para dar a resposta no dia seguinte. Naquela noite, sonhou que recebia um visitante na sua casa, tão alto que precisou vergar-se para entrar, luminoso e de três olhos. No dia seguinte, em conversa com o assessor de Lula, comunicou-lhe algo que jamais tinha feito antes: “Não vai ser possível atender o presidente. Ele precisa ser atendido por um espírito de luz, e eu não tenho esse nível, pois há muita escuridão ao redor dele”. O assessor disse-lhe que ele estava perdendo uma oportunidade de ouro de enriquecer e se foi. O fato é que Jorge Bessa não ligava para dinheiro; o dinheiro é que ligava para ele. Jorge Bessa iniciara Ricardo Larroyed a transitar no labirinto dos pulsos, perscrutando a alma.

O mundo fenomênico existirá de fato, ou será apenas um sonho do espírito? Todos os dramas, as tragédias, será tudo apenas sonhos, miragens, ou verdade? O Qi, o que é o Qi? Será uma força cósmica, que criou e permeia todo o universo? Será Deus? Ou apenas energia, simplesmente? Diferentes ideogramas chineses com este som, Qi, representam a energia celestial, do ar (éter?), dos alimentos… O Qi emanará da matéria? Ou existe independentemente da matéria? Ou é anterior à matéria? Ou a matéria é apenas uma representação, tosca, do Qi? Antigos alquimistas chineses ensinavam que o Qi é a energia primordial, que dá origem à matéria, que é a energia quântica que sustenta a matéria, o “sopro do céu”. Hálito de Deus? O Verbo? A Vida? A palavra energia vem do grego, ação, trabalho, transformação, o Tao, o caminho, o fluir da vida, a dualidade de tudo que existe no Universo, yin e yang, as forças fundamentais, opostas e complementares, que se encontram em todas as coisas: yin, a natureza feminina, água, passividade, escuridão, absorção; yang, a natureza masculina, fogo, luz, atividade. Cada ser, objeto ou pensamento possui um complemento do qual sua existência depende. Não existe atividade absoluta, nem passividade absoluta, mas, sim, transformação contínua, e equilíbrio. Se a Terra estivesse a apenas uma pequena fração mais próxima do Sol, ou mais distante, isso eliminaria toda a possibilidade de vida no planeta. O Universo equilibra-se, pois, no fio da navalha – Ricardo Larroyed ouvia, com nitidez, vinda de algum portal, a voz de Jorge Bessa. Viu na maca um feixe de meridianos, vibrando, oscilando, em diversas frequências. “São essas frequências que determinam a sintonia” – ouviu, largando os pulsos de Rosa Nolasco, como se suas mãos fossem impulsionadas por molas. Sentiu frio na boca do estômago, e, depois, náusea; um sabor amargo se insinuou na sua boca. Diante de si, descortinou-se a bocarra do abismo, negra e viscosa, anunciando profundezas intestinais.

“Ela vai morrer?” – Emanoel Vorcaro interrogou Ricardo Larroyed, em silêncio, ao ler seus olhos.

– Ela depende de mim! Ela é o fogo extinto e vivificado das cinzas do meu coração! – gemeu o velho, no ouvido de Ricardo Larroyed, a quem pegara pelo braço e fizera recuar da beira da maca.

    – Vou aguardá-lo na minha sala – disse Larroyed. – Depois da sessão gostaria de trocar umas palavrinhas com você, pode ser? – perguntou, dirigindo-se a Rosa Nolasco.

    – Sim – disse a modelo, com voz fraca.

    Larroyed saiu a seguir. Não queria mais olhar para Rosa Nolasco; era linda demais, tão linda quanto Greta Cantanhede, cada qual a seu modo. Foi para a sua sala e sentou-se à mesa, pensativo, voltando a sentir a tristeza que o tomara de assalto ao sondar os pulsos da obra de arte. Sentiu, nos pulsos da escultura ruiva, um jardim sem manhã, sem pássaros e insetos, sombras atraindo mais sombras, e gritos. “Ela vai morrer! E no entanto as rosas são imortais, segundo Emanoel Vorcaro. Ela é tão linda que a vontade que temos é de ficar olhando-a, só olhando-a, por toda a eternidade, pois, se tentarmos tocá-la, poderá esvair-se. E, no entanto, ela simplesmente morrerá; morrerá com uma agulha de 75 milímetros espetada no coração, outra no baço, e cinco no útero, sete agulhas no total. Serão 525 milímetros de agulha no seu espírito, na sua mente, no portal da vida.” Levantou-se, revoltado com sua mediunidade, e foi ao banheiro. Sentou-se no vaso para urinar. Lavou as mãos, retornou à sala e abriu o armário por trás da escrivaninha, pegou uma caixa, depô-la sobre a mesa e abriu-a, tirando de lá um pacotinho de Dong Bang, a boa agulha coreana, de 0,25 mm por 30 mm, e aplicou uma no alto da cabeça, no VG20, e outra entre as sobrancelhas, o Yintang, e quedou-se ali, sentado, em meditação. Abriu os olhos com as batidas de Emanoel Vorcaro à porta.

    – Pode entrar – disse, tirando as agulhas e as depositando num recipiente.

    Vorcaro introduziu a modelo e ambos sentaram-se à mesa.

    – Vai demorar? – Rosa Nolasco perguntou.

    – Não! Quero apenas lhe fazer algumas perguntas. Não sei se o professor Emanoel Vorcaro lhe falou, mas sou, além de acupunturista, delegado da Polícia Civil do DF, e estou investigando o assassinato de três modelos da Modelo Cerrado – Larroyed explicou.

    – Oh! O professor não me falou nada disso, mas eu soube das mortes das modelos. Mas o que tem isso a ver comigo? – ela quis saber.

    – Você é da Modelo Cerrado?

    – Sim! Sou!

    Larroyed sentiu, de novo, aquele desconforto, como se o chão estivesse se movendo sob seus sapatos.

    – Bem, é que as três modelos tiveram um caso com o professor de dança Sebastião Estrela – disse.

    – Ele vem me azarando, mas eu não sabia que estivesse enrolado desse jeito. Foi ele que matou as meninas?

    – Não! Não sabemos! E a dona da Modelo Cerrado, a sra. Maíra da Matta, acha que não, que ele não seria capaz de matar nem uma mosca, e depois ele tem álibis incontestáveis. O que eu preciso saber é como foi a aproximação entre vocês dois, se ele perguntou alguma coisa sobre mioma e acupuntura e se é violento – Larroyed sondou.

    – O quê? Mioma, acupuntura? Quem disse para ele?

    – Não! Ninguém disse nada. É que as outras modelos também tinham mioma e chegaram a se tratar com acupuntura.

    Ela olhou para Vorcaro.

    – O que é que você tem com isso, Emanoel Vorcaro? – ela perguntou.

    – Eu? Nada! Nada! Eu só soube desse caso, desses assassinatos, ontem! – gaguejou o velho professor.

    – Não! O Vorcaro não tem nada a ver com isso, e se há uma pessoa que poderá curá-la, que poderá evitar que você se submeta a uma cirurgia de extração do útero, essa pessoa se chama Emanoel Vorcaro; e mais, se houver mesmo um assassino em série ele pensará duas vezes em atacar novamente, porque saberá que Vorcaro é meu sócio, e eu sou cana. Vorcaro é uma das pessoas mais decentes que há no mundo – disse Larroyed.

    – Bem, isso é verdade! Fico lá, inteiramente nua, e o Vorcaro é incapaz de se aproveitar – disse a modelo, passando o braço em torno do ombro do professor e beijando-o no rosto.

    – Então, como é o tal do Sebastião Estrela?

    – Olha, o Sebastião Estrela não fede nem cheira, mas parece que tem faro. Ele andou me farejando, como diz meu irmão, o major Francisco, que, aliás, já está atrasado, o que é uma raridade. O Sebastião Estrela é um cara bonitão, e sei de história de mulher casada que se ajoelhou nos pés dele, suplicando para ser, digamos, degustada, e foi degustada, porque o cara é galinha. Mas ele não faz meu gênero. Gosto mesmo é de homens mais velhos, bem mais velhos, que são atenciosos, carinhosos, pacientes, têm traquejo, são perfumados, elegantes e presenteiam as mulheres com rosas vermelhas, e eu acho que alguns leram bastante Freud, iniciando-se “em a natureza” feminina, como dizia um professor meu, de português – ela comentou, com o braço nos ombros do professor Emanoel Vorcaro, que mantinha-se quieto ao lado daquele vulcão ativo.

    – Vocês chegaram a sair?

    – Saí uma vez com ele. Foi numa noite em que eu não tinha nada para fazer, nada. Então resolvi aceitar o convite. Jantamos no Shushi San e depois do jantar o cafajeste simplesmente me convidou para irmos, nas palavras dele, ao melhor motel cinco estrelas de Brasília. Disse-lhe para ele ficar me esperando lá. Pedi um táxi e voltei para casa. Depois disso ele ficou me rondando igualzinho as mariposas em torno da luz. Não que eu seja alguma luz, mas ele é todinho uma mariposa. Quer saber, Ricardo, seria mais fácil eu acabar com a raça daquele sujeito do que ele me matar – ela disse, tirando o braço dos ombros do professor e olhando o reloginho de pulso. Nesse momento ouviu-se baterem à porta.

    – Pode entrar – disse Larroyed, e o major Francisco Nolasco entrou.

    – Delegado Ricardo Larroyed? – ele perguntou.

    – Olá, major Francisco Nolasco – disse Larroyed.

    – O que é que você está fazendo aqui?

    – Sou também acupunturista, sócio do professor Emanoel Vorcaro.

    – A major Celina Gomes estava certa! Minha irmã está nas mãos de gente boa, de gente decente. Folgo muito em saber disso! Você está ao par do caso da minha irmã, e de tudo o que ela já passou?

    – Sim! O professor Vorcaro me pôs ao par, com o objetivo de, juntos, chegarmos a um tratamento definitivo, de modo que Rosa Nolasco possa ter filhos e se tornar uma saudável dona de casa – disse Larroyed. – Professor, o senhor e a Rosa poderiam me aguardar na sala de estar enquanto converso rapidamente com o major? – perguntou. 

    A conversa não demorou muito. O major e a modelo foram embora e a dupla de acupunturista seguiu para o habitual almoço de sábado. Era um sábado quente como o inferno, e as nuvens começavam a se aglomerar.

    – Quando começar a chover não vai mais parar – Larroyed profetizou.

    – Vai chover o resto da minha vida – Vorcaro concordou. – Você terá ainda muito sol pela frente. Eu não! Já não preciso mais de sol. Começo a ver tudo claramente. As nuvens vão se acumular até a noite, haverá muito calor, um calor delirante, não pela temperatura em si, mas porque tudo estará tão abafado que é como se tudo estivesse morto. O anoitecer começará no meio da tarde, de modo que às 18 uma capa de chumbo cobrirá a cidade, e isso permanecerá durante horas, até que a tempestade desabe, como mioma celeste. Será o dilúvio da minha vida.

    Ricardo Larroyed olhou para o amigo. Ele estava estranho.

Ambos estacionaram seus carros no pátio atrás da Feira do Guará e encontraram-se no único restaurante paraense de Brasília, o Cantinho do Pará, onde iam de vez em quando, e eram atendidos pela proprietária, dona Vanessa. Ricardo Larroyed sentia-se também estranho, por isso convidara o amigo para comerem no Cantinho do Pará, onde podia beber cachaça com jambu e tomar tacacá. Devido a suas propriedades antioxidantes, diuréticas e anti-inflamatórias, gostava de espilantol, responsável pelo efeito indutor da salivação e pela estimulação do nervo trigêmeo, e extraído das flores, amarelas, folhas e caule do jambu, a Spilanthes oleracea, erva que cresce como capim na Amazônia. “Imagino absinto com jambu” – pensou, degustando a cachaça. O professor Emanoel Vorcaro, sempre bom de boca, comia um prato de maniçoba. Provavelmente não havia quem gostasse mais do Brasil do que o professor Vorcaro, por três razões: o paraíso tropical, o celeiro de alimentos e o cadinho étnico, que produz as mulheres mais exóticas e lindas do mundo. 

    – Meu Deus! – ele gemia enquanto degustava a maniçoba, prato de origem indígena, típico do Pará, preparado com folhas de mandioca moídas e cozidas durante cerca de uma semana, para se retirar delas o ácido cianídrico, venenoso. Às folhas, acrescentam-se carne de porco, carne bovina, e outros ingredientes defumados e salgados, servindo-a com arroz branco e farinha d’água. 

Dona Vanessa trouxe a cuia de tacacá. Ricardo Larroyed recebeu-a, salivando. Deu uma grande golada. O tucupi era novo e o jambu, do Pará, fresco, e os camarões eram enormes. Ambos comiam em silêncio, até o último bocado. Então foi servido bolo paraense de macaxeira e café.

A tarde fluía lenta como um rio de planície, quente e abafada. O céu, aos poucos, ia tomando a forma de tumor, como estase de chumbo.

– Vai ser água que não acaba mais – Emanoel Vorcaro profetizou. – Sou suspeito? – perguntou, de repente.

– Até eu sou suspeito! – exclamou Ricardo Larroyed. – Mas não vejo razão para você matar uma rosa. Aliás, acho que você está se envolvendo demais com ela. Porém, ao mesmo tempo, fico pensando nessa história de se envolver ou não com pacientes. Às vezes penso em mandar tudo para o inferno e fazer uma longa viagem com a Greta.

– Durante toda a minha vida de terapeuta jamais me envolvi com qualquer paciente, não por falta de oportunidade, mas porque sou homem de princípios, mas agora não estou ligando para nada – disse Vorcaro. – Lembro que uma vez uma paciente, casada, dessas que respingam sensualidade, pegou no meu pênis. Lembro que fiquei excitadíssimo, mas me controlei. Dispensei-a. Foi a única vez que dispensei um paciente. Ela ficou uma fera ao se sentir rejeitada e tentou fazer fofoca com a Eliana, mas a Eliana acreditava, sempre, em mim. Nisso ela era completamente fiel. O fato, porém, é que muitas mulheres, quando sentem a pegada de homem, durante uma sessão de tuiná, ou até mesmo o timbre de voz masculino, ou a atenção de um homem com real natureza masculina, sentem-se curadas de ansiedade, tensão, neurastenia. A verdade é que as mulheres são infinitamente mais complexas do que nós, homens. E são como vampiras: sugam-nos até o tutano.

– Pois é, e fico pensando por que nós casamos, assinamos um contrato social, e depois convivemos juntos, às vezes, durante mais de 50 anos, obrigados a ver um ao outro na intimidade mais abjeta; muitas vezes, uma pessoa que você cheirou e lambeu chega a um estado de absoluta decadência – disse Larroyed.

– Como você sabe, o corpo, o mundo fenomênico, a matéria, são apenas projeção da mente. Massaharu Taniguchi deixou isso bem claro. E Jesus Cristo também. Tudo o que nos chega por meio dos cinco sentidos, e também do sexto sentido, é projeção da mente. O que é o mundo material? É apenas algo que percebemos via sentidos. O mundo material existirá realmente? Somos apenas feixes de energia, como a fiação numa dessas caixas telefônicas, e é o que vejo, hoje em dia, na maca; vejo meus pacientes como um feixe de energia, uma trama de meridianos, o Qi correndo por ali, de uma extremidade para outra, de um lado para outro – disse Vorcaro. Ficou um pouco em silêncio e voltou a falar. – Com Rosa Nolasco é diferente. No caso dela, todo o meu organismo é mobilizado, a hipófise, a glândula pineal, tudo, e eu renasço, e voo, o voo da luz, 300 mil quilômetros por segundo, ou mais, pois me vejo, de repente, em Paris, ou na China – disse, e calou-se.

– É, eu sei – disse Larroyed, depois de algum tempo. – Sinto que a Greta é a mulher certa para essa travessia.

– Ame-a, não importa o que ela exija, não importam as mudanças de humor de uma mulher; isso faz parte da natureza delas. Elas precisam apenas ser amadas, e nada mais. Comparo as mulheres às rosas. São indestrutíveis na sua fragilidade, imortais na sua efemeridade, eternas na sua fugacidade. E, como as rosas, não precisam mais do que atenção, um pouco de sol, um pouco de água, mas precisam mais de atenção, a mesma atenção que lhes dão os beija-flores. Por isso ame a Greta desesperadamente, como se o holocausto estivesse com data marcada para daqui uma semana – disse. Seus olhos estavam úmidos. – Acho que vou comer pavê de cupuaçu – disse, de repente.

– E eu, bombons de bacuri – disse Ricardo Larroyed.

A tarde mergulhava cada vez mais num corredor sombrio e pegajoso, e o movimento na feira diminuíra bastante. Muita gente se fora antes da chuva.

– Daqui a cinco dias será Natal – disse Larroyed. – Você quer passar o Natal com a Greta e eu?

– Não, meu querido amigo. Você sabe, meu Natal é sempre comigo mesmo. Na noite de Natal, rezo. Tem sido sempre assim, desde que perdi Eliana e papai. Mas o réveillon, sim, passarei com vocês, nem que seja do mundo espiritual – disse.

– Você está falando muito em morte; brindemos à vida! Eu com Greta e você com Rosa Nolasco – disse Ricardo.

– Ricardo Larroyed – respondeu Emanoel Vorcaro –, a Rosa Nolasco não significa para mim mais do que um foco de luz viajando pelos labirintos do meu cérebro; seu corpo maravilhoso é apenas o reflexo da sua mente. Ela foi usada e já fizeram com seu corpo todo tipo de torpeza, mas nada pode afetar o éter.

“Acho que ele ficou um pouquinho porre com o cheiro da aguardente com jambu” – Larroyed pensou.

– Você precisa pegar esse matador de modelos – disse Emanoel Vorcaro. – Antes que ele mate Rosa Nolasco.

– Apesar dos álibis perfeitos, desconfio de Sebastião Estrela, o dançarino galinha. Mas por que um sujeito que consegue tudo com as mulheres as mataria?

– Tudo, não. A Rosa Nolasco deu a entender que a alma desse cara é asquerosa. Você, que tem o dom de ver o corpo etéreo, terá uma noção, hoje à tarde, se é ele o assassino. Quanto a mim, minha missão é livrar a Rosa Nolasco daquela colônia de miomas, e só então poderei ir sereno ao encontro da Eliana. Não seria justo matarem uma rosa.

– Sinto que ainda hoje terei uma resposta para impedir que mais uma dessas criaturas seja assassinada – disse Larroyed.

A tarde estava sombria, e foi iluminada por um raio, que rasgou o céu ao norte; pouco depois ouviu-se estrondar, como se o céu estivesse desmoronando. A tarde ficara imóvel. Dona Vanessa serviu-lhes café.

“A hora em que furarem a pelica do tumor, mênstruo cairá sobre a Terra; a hora em que penetrarem o útero de Rosa Nolasco, com uma agulha de acupuntura de 75 milímetros, sangue negro e espesso começará a sair, como carnicão, pela vagina.” Essas palavras percorreram o subconsciente de Ricardo Larroyed, e chegavam ao seu consciente como a dor provocada por uma agulha mal colocada no BP3. Nada se movia na tarde, nem seu pensamento. Era incapaz de reagir à imobilidade. Estaria sonhando? Eliana era infértil. Rosa Nolasco queria ter filhos. Greta quereria ter filhos dele? Novo relâmpago, nova trovoada. Continuaram conversando. Lá pelas 14h40 deixaram a Feira em direção aos seus automóveis e pouco depois estacionavam no Conjunto Nacional.

Ricardo Larroyed chegou à Modelo Cerrado 15 minutos antes das 16 horas, “como os japoneses”. Foi introduzido na sala da diretora, Maíra da Matta, “o ninho da águia”, e ficou no aguardo do professor Sebastião Estrela. Uma hora depois, nada do professor chegar. Sentiu-se inquieto. Levantou-se e se aproximou da mesa da diretora. Algo lhe chamou a atenção na estante, atrás da mesa. Contornou-a e se aproximou da prateleira, e então viu um pacotinho de agulha de acupuntura de 75 milímetros, utilizada para analgesia de nervo ciático. Foi até o janelão de vidro e pôs-se a observar a Torre de TV, durante uns 15 minutos, quando ouviu um ruído atrás de si e se voltou. Era a diretora, Maíra da Matta.

– Mil perdões, delegado, mas fiquei presa num engarrafamento e tinha esquecido meu celular. O professor Sebastião Estrela já esteve aqui? – ela disse.

– Não! Estou esperando por ele desde as 16 horas, o horário combinado – volveu Ricardo Larroyed.

– Por que será que ele não veio! Aguarde mais um pouquinho; vou ver o que aconteceu – e saiu.

Não demorou a retornar.

– Sinto-me uma idiota, delegado. O Sebastião Estrela teve que ir ao Rio e eu não fiquei sabendo; a mãe dele está à morte. Eu soube disso somente agora. O senhor me perdoa?

– Tudo bem, professora. A senhora sofre dores no ciático? – perguntou-lhe.

Maíra da Matta demorou de dois a três segundos para responder.

– Sim, sim! Dores terríveis!

– E se trata também no Instituto Holístico?

– Não! Eu me trato com um chinês, no Sudoeste; Hu Yong!

– Sei quem é. E tem surtido efeito o tratamento?

– Sim, tem!

– A senhora leva as agulhas para ele?

– Às vezes.

– São umas agulhas pequenas…

– Não! São grandes, enormes.

– Ele as aplica em que região do corpo.

– No ciático.

– Na planta dos pés.

– O ciático começa nos quadris e vai até o calcanhar. Nós, bailarinos, sabemos muito bem disso.

– E o tigre corajoso aplica as agulhas ao longo do ciático?

– Não! Ele só as aplica no glúteo.

– Por que a senhora não me falou que se submete à acupuntura também?

– E por que falaria? Por acaso o senhor me acha suspeita de assassinar minhas meninas?

– Oh! Não! Desculpe-me. É que achei estranho só me falar nisso agora, depois que a senhora mesma observou que as três vítimas trataram-se com acupunturistas. A senhora conhece o professor Emanoel Vorcaro?

– Não! Nunca ouvi falar nessa pessoa. Por quê?

– Emanoel Vorcaro foi quem atendeu Roberta de Castro e Silva e Gabriela Costa Médici no Instituto Holístico. Foi a senhora que as encaminhou ao Instituto Holístico?

– Não! Nunca conversei sobre acupuntura com ninguém. Esse tratamento que faço com o dr. Hu Yong é recente. Ninguém o indicou a mim. Vi um anúncio dele na revista Excelência, uma revista VIP, aqui de Brasília mesmo, e resolvi experimentar.

– Ele lhe ensinou a aplicar as agulhas em si mesma?

– Não acho que fosse prudente aplicar aquelas agulhonas e naquela região em si mesmo; e depois não acredito que haja algum acupunturista que oriente seus pacientes a se aplicarem agulhas.

– A senhora tem razão. Isso não é possível. Bom, já que a estas horas o professor Sebastião Estrela já deve estar na Cidade Maravilhosa, nada há a fazer, por enquanto.

– Lamento, delegado. Assim que ele retornar avisarei o senhor.

– Tudo bem.

A noite caíra cedo. Já eram quase 18 horas. O tempo permanecia parado, e agora lembrava uma pintura de Edvard Munch, mais sombria ainda do que O Grito, ou uma daquelas gravações de Oswaldo Goeldi. O fato é que a noite parecia uma pintura de piche; um quadro pendurado no negror cósmico.

Ricardo Larroyed olhou para o relógio: 18h03. “Vou entrar na Só De Ler” – pensou.

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Equipe de jornalistas do Jornal DC - Diário Carioca