Ginasta se torna a primeira brasileira a subir duas vezes ao pódio numa só edição de Jogos Olímpicos. Na madrugada desta segunda, ela encerra a participação em Tóquio na final do solo
A paulista Rebeca Andrade não avisou ninguém, mas trouxe na bagagem para Tóquio um interruptor para acionar emoções e uma caneta permanente para escrever algumas linhas no livro de feitos inéditos do olimpismo nacional. Depois da primeira medalha da história da ginástica artística feminina brasileira, com a prata no individual geral, a atleta de 22 anos deu dois saltos adiante. Com um “Cheng” e um “Amanar” executados com competência, ela conquistou o ouro na prova do salto nos Jogos Olímpicos de Tóquio. Rebeca somou 15.083 pontos na média das duas apresentações. A prata ficou com a norte-americana Mykayla Skinner, com 14.916, e o bronze com a sul-coreana Seojeong Yeo, com 14.733. A competição reuniu as oito melhores da fase de classificação.
- Foto: Miriam Jeske/COB
O resultado transforma Rebeca na única brasileira a conquistar mais de uma medalha em uma só edição de Jogos Olímpicos. Faz dela a única campeã olímpica da ginástica artística nacional. Abre para a paulista de Guarulhos as portas de um grupo restrito de brasileiras que subiram ao pódio mais de uma vez em Jogos Olímpicos, ao lado de algumas poucas atletas do vôlei e da judoca Mayra Aguiar. E a história ainda não terminou. Rebeca tem um Baile de Favela a cumprir na final do solo na madrugada desta segunda-feira (02.08), a partir das 5h57 (de Brasília).
“Não sabia desses números, não. Mas é para ficar orgulhosa, né? De representar a força da mulher. É gratificante mesmo. As pessoas sabem como é difícil estar aqui e trazer duas medalhas”
Rebeca Andrade
“Não sabia desses números, não. Mas é para ficar orgulhosa, né? Orgulhosa de representar a força da mulher. É gratificante mesmo. As pessoas sabem como é difícil estar aqui e trazer duas medalhas”, disse Rebeca. “No individual acho que a medalha representou todo mundo. Todas as gerações da ginástica do Brasil que já tinham passado. Uma coisa que parecia que a gente precisava e que as pessoas esperavam muito”, avaliou. “Já a de hoje dedico especialmente ao meu treinador, o Francisco Porath, porque a gente trabalhou duro e fiquei feliz demais de ver a felicidade, o choro dele. Ele só quer me ver brilhar, sabe, e a única forma que posso retribuir é com a minha ginástica. É o que vou buscar sempre. Dar orgulho às pessoas, à minha família e para mim”, disse Rebeca.
Francisco Porath era só a ponta mais visível de um orgulho que, não raro, se misturava a lágrimas de personagens ligados ou não à ginástica. A lista inclui as ex-atletas Jade Barbosa e Daiane dos Santos, na transmissão televisiva. Passa pelo apoio expresso de Simone Biles na arquibancada. A americana desistiu da prova para priorizar sua saúde mental e era uma das mais efusivas na torcida, com direito a um “Go, Rebeca”, antes dos saltos da brasileira. Passa por uma homenagem carinhosa a Rebeca da eterna ídola Nadia Colmanecci nas redes sociais. E, claro, aterrissa em Guarulhos, na casa da mãe de Rebeca, Dona Rosa, que concedeu um depoimento à televisão momentos depois do pódio.
“A minha cabeça é a mesma de quando saí do Brasil: estou totalmente concentrada, preocupada com as coisas que importam, com o que preciso fazer, para depois pensar em tudo isso que está acontecendo”
“Eu sou muito patriota. Desde criança, toda quarta-feira tinha a fila para cantar o hino na escola e eu me emocionava. Agora, você ver uma filha representando o Brasil no outro lado do mundo e tocando o Hino Nacional, é surreal. É muito emocionante. Eu chorei muito, chorei muito mesmo. Não tem como explicar”, disse a mãe de Rebeca.
Foco no que importa
Rebeca, por sua vez, prefere adotar a versão centrada, objetiva, pelo menos por enquanto. “Nas redes sociais vejo que está bombando e tem uma galera feliz. Mas a minha cabeça é a mesma de quando saí do Brasil: estou totalmente concentrada, preocupada com as coisas que importam, com o que preciso fazer, para depois pensar em tudo isso que está acontecendo”, afirmou.
“Eu sempre reposto o que as pessoas estão me mandando porque sei que elas torcem demais, querem o melhor. Tem muita gente que nem conheço torcendo, mas amanhã tem mais um dia difícil, em que vou dar 110% de mim, e é nisso que estou pensando. Na medalha também, claro, e estou muito feliz”, disse. Além de Rebeca, Arthur Zanetti tenta a terceira medalha olímpica consecutiva na disputa da final das argolas a partir das 5h (de Brasília). Caio Souza entra na final do salto a partir das 6h51.
Estrutura e investimento
O Brasil experimenta nos últimos 20 anos uma ascensão significativa na modalidade, com resultados expressivos conquistados pelos atletas nacionais em torneios continentais, em etapas da Copa do Mundo, em mundiais e em Jogos Olímpicos. Essa ascensão foi acompanhada de investimentos do Governo Federal e o patrocínio de estatais para garantir viagens, treinamentos e a equipagem de 16 centros de treinamento no país.
Os sete integrantes da seleção de ginástica artística classificados para Tóquio fazem parte do Bolsa Atleta, programa de patrocínio individual do Governo Federal Brasileiro. Seis deles, incluindo Rebeca, pertencem à categoria Pódio, a principal do programa, voltada para atletas que se posicionam entre os 20 melhores do mundo em suas modalidades. No ciclo entre os Jogos Rio 2016 e Tóquio 2021, a ginástica artística recebeu do Governo Federal investimento direto de R$ 7 milhões via Bolsa Atleta, recursos que propiciaram a concessão de 256 bolsas.
- Rebeca ousou na escolha dos movimentos com alto grau de dificuldade. Foto: Ricardo Bufolin/CBG
Cheng e Amanar
Como é de praxe na ginástica artística, os nomes dos saltos que conferiram a Rebeca o título olímpico são homenagens a ginastas que protagonizaram pela primeira vez as acrobacias. O Cheng é uma referência à chinesa Cheng Fei, ouro nos Jogos de Pequim, em 2008. O movimento tem alto grau de dificuldade. Por isso, vale seis pontos a quem o executa.
“Eu pensei em usar todas as cartas que tinha. Saltei um duplo e meio, que era uma opção que muitas pessoas duvidavam. Diziam: ‘Ah, ela não vai fazer chegada cega, isso e aquilo outro do joelho dela’. Só que eu treinei muito, eu estava preparada”
O Cheng envolve uma meia volta da ginasta na aproximação da base de salto seguido de uma pirueta e meia na fase aérea. O salto de Rebeca foi executado com quase perfeição, com exceção de um desvio de direção no voo, que gerou uma pisada leve fora da área de aterrissagem. Rendeu 15.166 à ginasta, uma ótima nota.
O segundo salto é batizado de Amanar porque foi feito pela primeira vez pela romena Simone Amanar. Envolve um “rodante” mais uma volta completa com apoio do trampolim. A ginasta entra de costas na mesa de salto. Na fase aérea, são duas piruetas e meia e uma chegada “cega”, sem que a atleta tenha completa noção espacial. Era um salto visto com um certo quê de mau agouro, porque foi fazendo ele que Rebeca machucou o joelho duas vezes. Em Tóquio, ela chegou bem e teve só uma leve movimentação após a chegada. Somou 15.000.
“Eu pensei em usar todas as cartas que tinha. Saltei um duplo e meio, que era uma opção que muitas pessoas duvidavam. Diziam: ‘Ah, ela não vai fazer chegada cega, isso e aquilo do joelho dela’. Só que eu treinei muito, estava preparada. Se ficasse pensando nisso eu não faria mais ginástica”, explicou Rebeca, que passou pela recuperação de três cirurgias de reconstrução de ligamento cruzado do joelho nos últimos cinco anos.
“Estou com a mente forte, pronta para os exercícios. Vinha fazendo durante muito tempo nos treinos. Eu não colocava na internet porque é bem melhor surpreender na hora, com todo mundo vendo. Fica mais gostoso de curtir. A ideia era usar tudo o que a gente tinha. Foi uma decisão sábia do meu técnico”.
É esse espírito que ela pretende aplicar na final do solo, nesta segunda-feira. “Busco sempre o meu melhor. Dei tudo no individual geral, tanto que até saí do solo. Vou fazer o mesmo de novo amanhã. Se vier medalha, vou estar grata. Se não vier, tudo bem também. Isso é esporte. Vence quem é melhor mesmo. Vou fazer 100% e espero dessa vez ficar dentro do solo, por favor, né, meu Deus? O resultado é consequência”.
Gustavo Cunha, de Tóquio, no Japão – rededoesporte.gov.br