Audiência Pública ouviu meninas e mulheres sobre caso de adolescente indígena assassinada no RS

Diário Carioca

As causas da morte da adolescente Kaingang Daiane Griá Salles, encontrada com o corpo dilacerado após violência sexual, abandonado nas adjacências do município de Redentora, Norte do Rio Grande do Sul, no dia 5 de agosto, ainda são misteriosas.

As descrições apresentadas pelas pessoas que estiveram no local do crime são tão chocantes e produzem tantas perguntas, que pela dignidade de Daiane não devem ser expostas, permanecem em segredo de justiça. No entanto, as vozes das indígenas precisam ser ouvidas para que esses crimes cessem, em especial as violências sexuais e os feminicídios.

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Os casos de Daiane, de 14 anos, bem como de Raissa Guarani Kaiowá, de 11 anos, que morava na reserva de Dourados (MS), assassinada e jogada de um despenhadeiro após sofrer um estupro coletivo, e de Regiane Cordeiro da Silva, de 15 anos, da etnia Baré, assassinada a facadas no dia 24 de julho de 2021, no Amazonas, não podem ficar impunes.

A visibilidade desses crimes deve caracterizar a natureza e o grau de desumanização imposto às populações indígenas brasileiras, em especial às mulheres e meninas, pois demonstram uma forte articulação entre idade, etnia e gênero. Algo que precisa ser compreendido e enfrentado nos contextos sociais e culturais em que vêm acontecendo na atual conjuntura do país, como uma face das mais cruéis na violação dos direitos humanos.

Estas foram as principais mensagens de uma audiência pública promovida na noite da última quarta-feira (18) pelas Frentes Parlamentares Mistas de Promoção e Defesa dos Direitos da Criança e do Adolescente e dos Direitos das Populações Indígenas, em parceria com o Observatório das Políticas Públicas para Crianças e Adolescentes (OPPCA), o Levante Feminista Contra o Feminicídio e o Conselho Indigenista Missionário (CIMI SUL).

Pela primeira vez, a comunidade local e regional foi ouvida. A audiência tomou conhecimento das medidas adotadas até o momento e apontou indicativos de novas ações. O encontro também contou com a presença da Articulação Nacional das Mulheres Indígenas Guerreiras da Ancestralidade (ANMIGA) e da Articulação de Mulheres Indígenas do Sul.

Voz às mulheres indígenas

Mais de cem pessoas de vários estados brasileiros, integrantes de movimentos de mulheres indígenas, da criança e do adolescente, de feministas e de direitos humanos em geral participaram da reunião “Por Todas as Daianes”. Tiveram voz uma dezena de jovens e mulheres Kaingangs de Redentora e região, lideranças do movimento de mulheres indígenas, advogados da família de Daiane e parlamentares. As deputadas federais Maria do Rosário (PT/RS) e Joênia Wapichana (Rede/RR), coordenadoras das frentes, fizeram importantes alertas e coletaram propostas de encaminhamentos.



A deputada federal Joênia Wapichana é a única voz indígena no Congresso Nacional / Divulgação

Joênia Wapichana, única voz indígena no Congresso Nacional, relacionou a morte de Daiane com a tentativa de genocídio de mais de 500 anos sofrido pelo seu povo, com a luta histórica pela terra e pela sua cultura e modo de viver. “Que civilização é essa que nos vê como parte do passado, mas que é capaz de cometer uma atrocidade como essa com uma menina indígena? É isso? É isso?”, perguntou com indignação, ao relatar que muitas mortes de mulheres indígenas vêm ocorrendo no país.

“Não basta roubar as terras indígenas, grilar, agora, estão assassinando a nossa futura geração?”, perguntou reiteradamente. Informou ainda que vem solicitando providências para que o caso seja investigado e cesse essa perseguição cabal contra suas irmãs.

Maria do Rosário, por sua vez, lembrou que o crescimento do ódio contra as mulheres, e o racismo e xenofobia têm fomentado uma escalada de violências contra essas populações. “Não se trata só do abandono das políticas públicas”, lembrou a deputada, mas de ações que levam ao genocídio de uma população, em especial no período da pandemia, e que já embasam três denúncias contra o governo Bolsonaro no Tribunal Penal Internacional. “Por isso esse caso de Daiane, de Raissa e outras meninas deve ser levado às últimas consequências, e integram um processo de violações aos direitos humanos que refutamos e denunciamos, ao mesmo tempo em que nos solidarizamos com suas famílias e comunidades.”

Dona Julia, mãe de Daiane, não compareceu à audiência. Segundo o advogado Bira Teixeira, que atende à família em Redentora, é porque “ela não consegue falar desde o acontecido”. O estado de choque em que a colocou o requinte de barbaridades cometidas contra o corpo de sua filha só poderá ser superado, diz o advogado, se ela souber que a sociedade está a seu lado, e que há pessoas a honrar a memória de Daiane”.

Este foi um dos sentidos da audiência, lembra Claudio Silva, do Observatório das Políticas para Criança e Adolescente (OPPCA). “Queremos demonstrar que nem Daiana, nem sua família, nem as comunidades estão sozinhas, que estamos unidos para apoiar, para buscar a verdade e impor aos responsáveis pelo brutal crime, a devida pena.”

Lágrimas, revolta e força

Medo de represálias, de sofrer as consequências de denúncias de machismo e de quebra de hierarquias, profundo choque, tristeza, temor pelas filhas, sentimento de invisibilidade, discriminação, abandono, silenciamento e fortaleza. Foram essas as principais expressões utilizadas pelas mulheres adultas e as jovens, algumas das quais as amigas mais próximas de Daiane, que muito emocionadas e revoltadas fizeram suas falas, entrecortadas de choros, lágrimas e também de muita força. Algumas colegas de escola, outras mães, tias, indignadas com a tentativa de culpabilizar a própria Daiane pela sua morte. “Todas as meninas têm direito a se divertir e a viver”.

Suas falas:

“Estamos aterrorizadas, buscando explicação para tamanha brutalidade e violência, chegando ao patamar extremo”, disse uma delas.

Estamos cansadas de ver as meninas e mulheres sendo caladas e submetidas. Na nossa cultura, toda vez que uma mulher sofre uma agressão, todas juntas sofrem por isso. Queremos respeito, chega de invisibilidade, precisamos de leis que nos protejam e não nos calem.

“Precisamos poder falar sem medo de sofrer as consequências, precisamos de políticas públicas já, por todas as Daianes e Raissas”, agregou mais uma.

 O que acontece dentro de nossas comunidades é a falta de políticas públicas, de respeito aos povos indígenas.

“Seremos militantes até a última mulher indígena, a última menina indígena”, alerta mais uma.

Somos uma linhagem de mulheres fortes e guerreiras, vamos lutar por justiça até o fim.



A antropóloga Joziléia Daniza Kaingang integra a ANMIGA, uma articulação nacional de mulheres indígenas / Divulgação

Para a integrante da ANMIGA, uma articulação nacional de mulheres indígenas, a antropóloga Joziléia Daniza Kaingang, é preciso compreender este fenômeno em toda a sua extensão, mobilizar todas as mulheres e a sociedade contra a barbárie contra os povos indígenas atualmente. Ela chamou para a participação da Marcha Nacional das Mulheres Indígenas que ocorrerá em setembro em Brasília como momento de somar forças e denunciar contra a barbárie. “Este crime deve ser visto no contexto da violência de gênero contra as mulheres, que sofreu um salto na pandemia. Não é suficiente nos matar, precisam de requintes de crueldade”, ressaltou. Joziléia caracterizou o crime como um feminicídio de uma mulher indígena.

Representante do Conselho Indigenista Missionário (CIMI SUL), que tradicionalmente atua no Rio Grande do Sul, Roberto Liebgott enfatizou o desmonte das lógicas de banalização da violência. “Isto não é normal, não é natural”, afirmou.

Para o CIMI, “a violência que se pratica contra indígenas se intensifica na medida em que se proliferam os discursos de ódio e intolerância contra os povos em âmbito nacional. Lamentavelmente os jovens, especialmente meninas, têm sido vítimas preferenciais de homens perversos, assassinos e estupradores. Exige-se justiça e medidas de proteção aos territórios e aos direitos dos povos indígenas”.

Advogado pede mobilização contra banalização do caso

Ao informar sobre o andamento das investigações, o advogado Bira Teixeira, que conta com uma equipe trabalhando no caso, alertou para a necessidade de manter a mobilização da sociedade para não permitir a banalização do caso. “Não basta um processo judicial, é preciso que se diga que isso não pode mais acontecer, temos que dar voz a Daiane, mostrar sua presença como permanente neste processo em que o silêncio parece ser uma arma muito importante para quem cometeu o crime. É também bem mais fácil para o Judiciário quando há silêncio, mas não, precisamos ganhar espaço na sociedade, incomodar.”

Ele tem convicção de que, pelas marcas encontradas no corpo da jovem, e o que sobrou de seu corpo e suas vestes, que ela lutou muito para impedir as violências, que gritou por socorro, como alguém que queria escapar, fugir, e por isso foi duramente punida. “Se não teve socorro enquanto estava viva, é preciso honrá-la agora”, conclamou o advogado, que se emociona e chora enquanto fala.

Levante Feminista acredita que foi feminicídio



A socióloga Ane Cruz falou em nome do Levante Feminista Contra o Feminicídio / Divulgação

Em nome do Levante Feminista Contra o Feminicídio, a socióloga Ane Cruz discorreu sobre as características do crime, que em tudo levam a crer que se tratou de um feminicídio, “pela crueldade aplicada, por ser mulher, por ser uma menina indígena”, como o descrito nas Diretrizes Nacionais do Feminicídio para investigar, processar e julgar com perspectiva de gênero as mortes violentas de mulheres, onde se destaca num capítulo os assassinatos de indígenas, e pela Lei do Feminicídio.

Segundo ela, o retrocesso das políticas públicas e o avanço de um governo de natureza misógina e racista transmitem à sociedade a ideia da impunidade e da legitimidade da violência. “Nós da campanha ‘Nem Pense em Me Matar’ acreditamos que quando se mata uma mulher, se mata a humanidade, e o assassinato de Daiane é um pouco a nossa morte. Por isso estamos todas enlutadas, mas estaremos juntas nessa jornada, monitorando, denunciando, exigindo investigação e justiça.”



Card Levante Feminista contra o Feminicídio / Divulgação

Comissões local e nacional vão monitorar desdobramentos

Um dos encaminhamentos dessa reunião, é a criação de uma comissão local e nacional de seguimento para monitorar os desdobramentos do caso, bem como debater possíveis medidas legais para tratar especificamente da violência de gênero contra mulheres em territórios indígenas, que estarão sendo produzidas pelas frentes parlamentares nos próximos dias.

A deputada Maria do Rosário, uma das promotoras da audiência pública, reafirmou que é preciso resistir a esse quadro de violações do direito à vida das crianças e adolescentes, previsto pela Constituição Federal e pelo Estatuto da Criança e Adolescente (ECA), em especial nos territórios indígenas, pela perseguição que se constata existir nos dias atuais. “Estamos ainda chocadas, mas isso não nos impedirá de tomar as medidas mais fortes para elucidação desse crime bárbaro e denunciar todas as omissões que possam surgir no processo da investigação.”

Desde que os fatos vieram a luz, a parlamentar já solicitou medidas de investigação profunda, utilizando todas as diretrizes recomendadas, aos órgãos federais, como o Ministério Público Federal, estaduais, em especial à Polícia Civil, para que nada escape às investigações. “Precisamos de justiça para Daiane”, concluiu.

#ParaTodosVerem

Card com fundo na cor branca, com uma grande metade de um girassol com miolo laranja, pétalas amarelas e contornos pretos no lado direito do card, a figura de uma mulher indígena aparece no lado esquerdo, ultrapassando para o lado direito do card, seus cabelos são longos e a franja cobre toda a testa onde está amarrada uma faixa larga na cor vermelha, cobrindo os olhos, de onde caem lágrimas na cor azul claro, formando um rio que preenche um terço da parte de baixo da imagem. Grafismos na cor preta aparecem nas bochechas, formando três pontas de frechas de cada lado que apontam em direção ao nariz. Um traço largo e preto abaixo dos lábios até o queixo. Cinco traços pretos seguidos no antebraço direito e dois traços pretos, seguidos, no colo. Dois traços longos seguem em direção aos dedos, alternados por pontos no dorso da mão direita que segura um pincel e rabisca a palavra Justiça, em traços estilizados em grafismos na cor preta, sob o rio de lágrimas. Seu semblante é de tristeza. Na parte inferior do lado direito do card e abaixo, está a logo da campanha: o desenho da metade vertical de um girassol, com pétalas amarelo e laranja, miolo marrom e contornos pretos, à esquerda da frase: LEVANTE FEMINISTA CONTRA O FEMINICIDIO, em letra preta.

Ao lado direito mais abaixo está a assinatura da artista Marta Moura

Fonte: BdF Rio Grande do Sul

Edição: Katia Marko


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