No último mês de agosto o presidente da República, Jair Bolsonaro (sem partido), apresentou ao Congresso Nacional uma medida provisória (MP) que cria os programas “Auxílio Brasil” e “Alimenta Brasil”, com a promessa de substituírem, respectivamente, o Bolsa Família e o Programa de Aquisição de Alimentos (PAA). No entanto, a MP não traz tantos detalhes, o que deixa as organizações da sociedade civil inseguras sobre o real acesso da população empobrecida a tais programas sociais.
O “Auxílio Brasil”, que pode substituir o Bolsa Família, na verdade oferece nove tipos diferentes de auxílios, levando em consideração a quantidade de crianças, as idades delas e o quão vulneráveis economicamente estão, o desempenho de adolescentes em competições esportivas ou olimpíadas de conhecimento. A MP 1.061 enviada por Bolsonaro não deixa claro quantas famílias serão atendidas, quais os valores a serem pagos ou como o programa será financiado.
Certamente a quantidade de famílias atendidas será inferior àquelas 50 milhões que receberam o Auxílio Emergencial. O Bolsa Família alcança 14 milhões.
O Governo Federal prevê pagar R$22 bilhões a mais do que já estava previsto para o Bolsa Família em 2022. Bolsonaro afirmou que o novo programa teria valor de R$400, depois disse que pagaria R$300 e, da última vez, prometeu um acréscimo de 50% em comparação ao que o Bolsa Família paga atualmente (em média R$189), o que significa que o “Auxílio Brasil” pagaria em média R$275 mensais.
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Mas essas informações não estão na MP, sendo algo “da boca para fora” e sem qualquer valor como política pública. O cadastro para acessar o programa seguirá sendo o CadÚnico, do Sistema Único de Assistência Social (SUAS).
Além do possível ganho político-eleitoral por ampliar os valores de um programa social, Bolsonaro ainda estará encerrando aquela que talvez seja a principal marca dos governos do PT. O atual presidente, vale lembrar, está com baixa aprovação e tem como principal adversário em 2022 o ex-presidente Lula (PT), que criou o Bolsa Família.
O quadro reforça a tese de que os programas sociais criados de última hora são uma aposta de Jair Bolsonaro visando alavancar sua popularidade para as eleições 2022. Para ter validade em 2022 a MP precisa ser votada e aprovada na Câmara Federal até o início de dezembro, podendo receber emendas (alterações) enviadas pelos deputados federais.
Apesar de não especificar valores ou número de famílias atendidas, a MP prevê que o Auxílio Brasil pagará nove tipos diferentes de benefícios: para famílias em situação de pobreza extrema; famílias com crianças de zero a 3 anos; para que jovens de 18 a 21 anos concluam o Ensino Médio; famílias já beneficiárias podem ter um acréscimo caso um adolescente (12 a 17 anos) da família tenha bom desempenho nos Jogos Escolares; também nas famílias beneficiárias pode haver acréscimo se um adolescente (12-17 anos) tenha bom desempenho em olimpíadas do conhecimento. Além disso:
Um auxílio para famílias beneficiárias com vínculo trabalhista formal; um benefício pago por no máximo três anos para famílias agricultoras; uma última categoria de auxílios para as famílias beneficiárias do Bolsa Família que sofrerão perdas por não se enquadrarem em nenhuma das categorias do Auxílio Brasil; e há uma proposta de vale-creche para famílias com crianças de zero a 4 anos que não tenha conseguido vaga na rede municipal;.
A proposta do vale-creche é criticada. As organizações da sociedade civil avaliam que, com o benefício, as prefeituras tendem a “se escorar” e reduzir ainda mais os investimentos na rede municipal. Quem ganha, por outro lado, são as redes privadas de creches, muitas vezes ligadas a instituições religiosas, que compõem a base de apoio de Bolsonaro.
Famílias rurais
O benefício pago (por até três anos) às famílias agricultoras foi chamado de “Auxílio Inclusão Produtiva Rural”. O primeiro problema é que o referido auxílio é direcionado apenas para famílias em condição de extrema pobreza e que tenha gestante, crianças ou adolescentes. Ainda que estejam em situação de vulnerabilidade, se não tiver criança ou adolescente, a família não terá acesso ao benefício.
“Essas restrições para acessar o programa mostram que a população rural do semiárido não é prioridade no orçamento do ministro Paulo Guedes”, diz Alexandre Pires, coordenador da Articulação do Semiárido Brasileiro (ASA Brasil), que reúne ONGs que atuam na região.
Cerca de madeira no Sertão do Pajeú, Pernambuco; semiárido é caracterizado por jejuns de até 8 meses sem chuva / Xirumba/ASA Brasil
As famílias rurais que conseguirem acessar o programa terão apenas 90 dias (3 meses) para produzir e entregar os alimentos no local combinado com o governo. O modelo é criticado por Alexandre. “Se para receber esse auxílio a família precisa devolver parte em forma de alimentos, então essa forma de auxílio é um empréstimo. Esse governo não reconhece as famílias camponesas como famílias que também precisam dessa renda. O Bolsa Família não é assim”, diz ele, destacando que a modalidade sequer pode ser considerada um programa de transferência de renda.
O coordenador da ASA Brasil explica que os recursos que as famílias rurais recebem no Bolsa Família são utilizados para suprir necessidades básicas e para estruturar suas propriedades, para melhorarem sua produção e conseguirem mais renda. Mas se o governo exige que a família ceda parte de sua produção, sobrará menos recursos para a infraestrutura e a produção sofrerá perdas.
“Somos contra essa lógica [proposta pelo governo]. Não é viável do ponto de vista produtivo e ainda compromete a estruturação dos agroecossistemas das famílias. Esse recurso deveria ser ‘livre’ para a família”, opina Alexandre, que defende o já existente PAA como bom modelo para estímulo produtivo. “Ele assegura a compra de alimentos da agricultura familiar e capitaliza as famílias para investirem nos seus sistemas e continuarem produzindo”, conclui.
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O prazo de três meses também é um problema. “O semiárido é uma região especial, que tem um regime de chuvas durante apenas quatro meses, seguido de oito meses de estiagem. Durante a maior parte do ano não tem chuva para essa família produzir, então essa família não vai conseguir ‘devolver’ os alimentos nesse prazo curto do programa”, diz Pires, que considera o programa inviável para a maior parte dos camponeses do Nordeste. “É uma clara demonstração que o presidente da República não conhece o mundo rural brasileiro, muito menos os povos do semiárido”, avalia.
Outro problema é que o benefício só pode ser acessado durante 36 meses e, cumprido esse período, a família tem de aguardar sem benefício durante três anos para voltar a receber. “Receber o benefício por três anos e depois ficar sem, só vai alimentar o assistencialismo. A família não vai conseguir se emancipar, então após o intervalo de três anos ela vai solicitar o acesso ao programa novamente. É uma vergonha o que o governo está propondo”, reclama o coordenador da ASA.
“Qualquer programa de transferência no mundo mostra que é preciso um tempo largo – sobretudo um programa que paga valores pequenos como é o Bolsa Família”, completa Pires.
Ele lembra que esse modelo proposto por Bolsonaro, que mantém as pessoas dependentes do programa em vez de emancipa-las, é exatamente o que o próprio Bolsonaro acusava o Partido dos Trabalhadores (PT) de ter feito. “Durante anos a direita brasileira – entre eles o então deputado Jair Bolsonaro – chamou o Bolsa Família de ‘assistencialista’ e ‘populista’. Mas o que ele está propondo se encaixa exatamente nessas críticas”, diz Alexandre.
“Uma política de distribuição de renda precisa ter assegurada a continuidade, para que as famílias vulneráveis possam melhorar sua condição alimentar, de moradia, acessar a educação e se inserir no mercado de trabalho, para ter mais autonomia. Assim elas conseguem sair da dependência do programa e se emancipar”, explica Pires.
Família rural no norte de Minas Gerais; estiagem é um dos empecilhos para “pagamento” com alimentos dentro de 90 dias / Ricardo Araújo/ASA Brasil
Ele considera que a MP é a destruição do Bolsa Família, mas que chega maquiada. “Ele não deixa explícito que é um programa cheio de condicionantes que alcançará um percentual muito pequeno da população do semiárido”, lamenta o coordenador da ASA. Caso haja uma redução no número de famílias acessando o principal programa social do Brasil, a tendência é que a fome – que está crescendo no país – tenha uma aceleração.
O país tem retroagido nesse quesito. Em 2014, ainda no governo Dilma Rousseff (PT), o Brasil chegou ao menor patamar de pessoas abaixo da linha da pobreza (4,5% da população), um patamar positivo o suficiente para a ONU retirar o Brasil do “Mapa da Fome”.
Mas desde 2015 a situação tem piorado, chegando ao pior momento agora no governo Bolsonaro, com cerca de 9% da população (19 milhões de pessoas) nessas condições. Segundo levantamento da Rede PENSSAN, das 7,7 milhões de pessoas que vivem no semiárido, cerca de 47% (3,68 milhões) estão em situação de insegurança alimentar grave (quando não se tem a garantia das três refeições ao dia).
Alimenta Brasil é o “novo PAA”
Na mesma MP 1.061 o presidente apresenta um substitutivo ao Programa de Aquisição de Alimentos (PAA), prevendo alcançar 30 milhões de pessoas, com aquisição de alimentos da agricultura familiar, direcionando para a rede de assistência social, que por sua vez atende a população em situação de vulnerabilidade. É uma proposta parecida com o PAA Doação, programa que existe desde 2003 e nasceu parte das ações do “Fome Zero”.
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Mas as poucas mudanças em relação ao PAA foram para pior. A economista Tereza Campelo, ex-ministra do Desenvolvimento Social no governo Dilma, fez uma série de críticas à MP. “O público do Alimenta Brasil é o mesmo do ‘auxílio inclusão produtiva rural’. Ele também dificulta a participação de outros públicos do meio rural, que é heterogêneo”, escreveu a ex-ministra.
Ela também destaca que a MP dificulta a participação dos CNPJs. “Inviabiliza ações mais robustas de doação de alimentos para populações em situação de insegurança alimentar, como as doações feitas por cooperativas de agricultores, que têm mais capacidade de doar com regularidade e em grande escala”, pontua Campello.
O novo programa também deixa de fora a modalidade de compra de sementes pelo poder público, o que estimulava a valorização e disseminação das sementes crioulas – sementes originais, qu garantem diversidade aos alimentos e à natureza, diferente das transgênicas, que são geneticamente alteradas.
Em anos com pouca ou nenhuma chuva entre março e junho, atividades produtivas ficam comprometidas / Xirumba/ASA Brasil
A ex-ministra chama atenção para o risco de dificuldades burocráticas travarem a execução do programa num primeiro momento. “O PAA é um programa estratégico e reconhecido em todo o mundo, com um funcionamento e governança já estabelecidos. Mas para o novo programa funcionar o governo precisará criar novas normas, uma nova estrutura de governança, regulamentar tudo, o que pode levar à paralisia e ao caos na execução dos programas. Isso não se faz no momento difícil e de crise que estamos vivendo”, avaliou.
Por fim, ela opina que a MP traz “itens desnecessários, o que pode levar a um engessamento do programa, limitando a possibilidade de inovações e adequações futuras”. Tereza Campello destaca ainda que a MP menciona o Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Consea) como órgão de controle do programa, mas o Consea, criado 1993, que havia sido extinto pelo próprio governo Bolsonaro em 2019, através da MP 870, mas uam comissão do Congresso Nacional vetou a extinção do órgão.
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Organizações que atuam no combate à fome veem com desconfiança a movimentação de Bolsonaro, afinal, até agora ele tomou muito mais decisões políticas que pioraram o cenário de pobreza e insegurança alimentar. Um exemplo é o Projeto de Lei 283 (Lei Assis Carvalho II), que prevê medidas de socorro financeiro para famílias agricultoras afetadas pela pandemia da covid-19. A ajuda foi aprovada na Câmara e no Senado, está há um mês na mesa de Bolsonaro, mas ele ainda não sancionou.
Outra escolha com grande impacto negativo para as famílias agricultoras do Nordeste foi o esvaziamento do Programa 1 Milhão de Cisternas (P1MC), que em dez anos entregou 1,3 milhão de cisternas de concreto no semiárido brasileiro, buscando a ambiciosa meta de zerar o déficit de famílias sem água potável na região com maior escassez de água no país.
O déficit atual é de 350 mil cisternas, o que custa aproximadamente R$1,25 bilhão segundo a ASA Brasil. Cada cisterna de placa de concreto tem custo aproximado de R$ 3,8 mil e tem capacidade de armazenar até 16 mil litros de água (da chuva ou de caminhões-pipa), garantindo que famílias de até cinco pessoas possam cozinhar e tomar banho durante os meses sem chuva.
Mas desde a derrubada da ex-presidente Rousseff, o Governo Federal tem reduzido os recursos para a construção de cisterna. Em 2014, por exemplo, Dilma investiu R$ 643 milhões em cisternas, enquanto o governo Bolsonaro previu não para um ano, mas para o quadriênio (2020-23) apenas R$183 milhões, uma média de R$45,7 milhões ao ano (ou 12 cisternas ao ano).
Precatórios
No mesmo dia em que enviou a MP 1.061 ao Congresso, Jair Bolsonaro apresentou a Proposta de Emenda Constitucional (PEC) nº 23/2021, sobre a dívida de precatórios do Governo Federal. Parte dessas dívidas já foram julgadas, mas Bolsonaro quer parcelá-las, o que pode ser negado pelo Supremo Tribunal Federal (STF). A situação pode inviabilizar os novos programas da MP, mas pode favorecer a narrativa de Bolsonaro contra o STF.
Caso o Supremo ceda, Bolsonaro tem o ganho político de pagar um programa social com valores maiores; mas se o Supremo mantiver decisão que obriga o governo a pagar os precatórios, o Auxílio Brasil fica inviável. A MP 1.061 também prevê o fim do Bolsa Família, o que significa que, a depender da decisão do STF, o Congresso precisará rejeitar a MP, ou milhões de brasileiros podem ficar sem qualquer benefício.
Fonte: BdF Pernambuco
Edição: Vanessa Gonzaga