A França vive uma espécie de reedição das eleições presidenciais de 2017 com uma disputa que será definida no 2º turno entre o atual mandatário, Emmanuel Macron (República em Marcha), e a candidata de extrema direita, Marine Le Pen (Reagrupação Nacional). O partido Reagrupação Nacional obteve a maior votação da história após 20 anos da sua primeira ida ao 2º turno. No entanto, as últimas pesquisas do Instituto Francês de Opinião Pública (Ifop) apontam vitória de Macron com 2% de vantagem.
No dia 10 de abril, Macron obteve 9,7 milhões de votos, representando 27,8% da preferência; Le Pen fez 8,13 milhões de votos, equivalente a 23,15%. Em seguida, Jean-Luc Mélenchon, com 7,14 milhões de votos (21,95%).
Também, figuraram na votação outros nomes: da extrema direita, Éric Zemmour, com 2,38 milhões de votos (7,07%); figuras de partidos tradicionais como o Partido Socialista, com a prefeita de Paris Anne Hidalgo (1,75% - pior resultado desde o governo de François Hollande); e Os Republicanos, com Valérie Pécresse (4,78%).
O voto na França é facultativo e o processo teve a maior abstenção eleitoral desde 2002, com 26,4% de ausência.
Desde a última quarta-feira (13), centenas de estudantes ocupam a Universidade de Sorbbone, em Paris, em protesto pelo resultado eleitoral. "Nem Macron, nem Le Pen" é a consigna defendida pelos estudantes. Cerca de 65% dos jovens franceses entre 25 e 34 anos votaram pelo candidato do partido França Insubmissa, Jean-Luc Mélenchon, que ficou em terceiro lugar com 22% da votação, com uma diferença de cerca de 421 mil votos a Marine Le Pen.
Segundo as últimas pesquisas de opinião da empresa Ipsos, cerca de 66% dos eleitores de Mélenchon votariam em Macron e 33% em Le Pen, na decisão do dia 24 de abril.
O líder do partido França Insubmissa pediu que seus apoiadores não votem na candidata de extrema direita, no entanto, não embarcou na campanha a favor do segundo mandato de Macron.
O Partido Operário Independente, criado em 2008 a partir de uma cisão do partido dos trabalhadores da França, apoiou a campanha de Mélenchon à presidência. É o único partido legal francês que recusa o financiamento público das campanhas.
Lucien Gauthier é editor-chefe do jornal semanal do POI, chamado Informativo Operário, Tribuna livre da luta de Classes (Informations Ouvrières - Tribune libre de la lutte des Classes) e analisa o cenário político da França em entrevista exclusiva ao Brasil de Fato.
Brasil de Fato – Após 20 anos da primeira vez em que a extrema direita conseguiu passar para o 2º turno presidencial, o partido Reagrupação Nacional teve uma votação recorde. Como entender essa permanência da polarização entre direita liberal e extrema direita?
Lucien Gauthier - Não há polarização. Houve 22% de votos para Melenchon, 23% para Le Pen e 26% para Macron com um aumento da abstenção para quase 30%.
Além disso, houve a candidatura do Partido Comunista da França, com Fabien Roussell, que em outros anos apoiou Melenchon e agora obteve pouco mais de 2% dos votos.
Por isso essa dita polarização foi fabricada. Não corresponde à realidade.
BdF - Mélenchon também obteve sua maior votação desde que começou a disputar eleições presidenciais. Então faltou unidade da esquerda?
Sim. O Partido Socialista, o Partido Comunista e o Partido Verde, na prática, apoiaram Macron. A Anne Hidalgo, candidata do Partido Socialista, afirmou que o Mélenchon no segundo turno seria o populismo de esquerda contra o populismo de direita de Le Pen.
E Fabien Roussell, do PCF, declarou que a esquerda não poderia estar no segundo turno.
“Nem Macron, nem Le Pen”, jovens franceses ocuparam a Universidade de Sorbonne, em Paris, contra um novo segundo turno presidencial entre direita e extrema-direita / Nicolas Tucat /AFP
BdF - A gestão de Emmanuel Macron foi marcada pela repressão aos protestos dos Coletes Amarelos, com um saldo de cerca de 40 mil pessoas detidas entre 2018 e 2019. Nestas eleições, o que sobrou desse movimento político?
Há vários anos existem mobilizações importantes na França. Houve os coletes amarelos, houve várias greves organizadas pelos sindicatos contra a reforma da aposentadoria de Macron, que lhe fizeram recuar, e também houve muitas manifestações de massa contra leis que restringiam a liberdade durante o confinamento.
Além disso, cresce no país uma raiva contra o regime, não apenas contra o Macron. A prova disso é que a prefeita de Paris, Anne Hidalgo obteve 1,7% dos votos e os grandes partidos de direita não obtiveram mais que 10% da votação.
Há uma rejeição a todos os partidos, uma cólera, porque há 40 anos a esquerda e a direita se sucedem no poder para fazer o mesmo.
Saiba mais: Qual a origem, quem são e qual o futuro dos “coletes amarelos” franceses?
Os coletes amarelos são trabalhadores de várias idades, mas principalmente mais maduros e há mais tempo no mercado de trabalho que se organizaram em 2018 e 2019 contra medidas neoliberais de Emmanuel Macron / Foto: Mehdi Fedouach/AFP
BdF - E qual será a postura da esquerda no 2º turno?
Mélenchon disse que iria convocar as 300 mil pessoas que participaram da sua campanha para que dessem sua opinião. Essas pessoas votaram assim: 0 votos para Le Pen, 30% para Macron e 70% pelo voto branco ou abstenção.
A líder da bancada da França Insubmissa na Assembleia declarou que não irão pedir votos para Macron.
BdF - Em junho há eleições legislativas. Apesar dos maus resultados nas presidenciais, os partidos tradicionais ainda possuem uma presença importante no Congresso francês. O que podemos esperar para o próximo processo eleitoral. Haverá maior unidade da esquerda?
A França Insubmissa, de Jean-Luc Mélenchon, irá apresentar candidaturas em todas as circunscrições eleitorais e estão abertos a lançar candidaturas conjuntas com os Verdes e o Partido Comunista.
Os dirigentes do Partido Socialista se dirigiram à França Insubmissa para propor uma discussão, mas receberam uma negativa depois que Anne Hidalgo acusou Mélenchon de ser o 'carniceiro do povo ucraniano' por suas posições relacionadas à guerra.
No primeiro momento, Macron se beneficiou, mas há um movimento no seio da população francesa. Em primeiro lugar, porque o preço da gasolina aumentou para 2 euros o litro, assim como o preço da farinha e outros gêneros alimentícios.
Após isso, Macron declarou que, por conta da guerra, a população teria que aceitar alguns sacrifícios.
E as centenas de seções sindicais, tanto da Central Geral dos Trabalhadores como da Força Operária, emitiram resoluções dizendo que não aceitarão pagar o preço da guerra e listando uma série de reivindicações, o que não ajuda Macron.
Jean-Luc Mélenchon, que ficou em terceiro lugar com 22% dos votos, pediu aos seus apoiadores que não votem em Marine Le Pen / Clement Mahoudeau /AFP
BdF - Embora tenha perdido apoio, segundo as últimas pesquisas de opinião, Macron deve ser reeleito. Durante a campanha para o 2º turno, o mandatário propõe um diálogo nacional, similar ao que fez após a crise dos Coletes Amarelos. Qual será a posição da esquerda caso aconteça um grande debate nacional?
As duas principais centrais sindicais rejeitam conversar sobre a reforma da aposentadoria. Os sindicatos franceses não gostam muito dessas propostas de diálogo nacional porque temos as experiências do passado. Portanto, acredito que não haverá um grande debate nacional.
Por outro lado, se ele for eleito terá que agir muito rapidamente e haverá um choque. Há um ódio generalizado por Macron.
Como em todos os países, o jovens são sensíveis em relação a candidaturas de extrema direita. Na França a situação é ainda pior, já que há muitos jovens negros ou de origem islâmica. Na última sexta-feira, foi convocada uma manifestação que reuniu mais de 10 mil pessoas e rapidamente passou de ser uma manifestação contra Le Pen para o lema: 'nem Macron, nem Le Pen'.
:: Análise | Coletes Amarelos franceses e os desafios dos movimentos antissistêmicos ::
BdF - A longo prazo quais são os desafios da esquerda para romper com essa alternância de poder?
Mélenchon afirmou corretamente que a ideia de uma grande aliança de esquerda acabou e propôs construir uma união popular, que agrupe militantes organizados, movimentos populares, intelectuais, coletes amarelos e diferentes setores sociais da França.
Em nível nacional, foi criado o Parlamento da União Popular, que reúne de 150 a 200 pessoas.
Amanhã ninguém sabe o que irá acontecer, mas há uma proposta de constituir em todos os departamentos franceses um Parlamento da União Popular com um caráter bem amplo.
O choque está se preparando. Na França há uma exasperação que já dura muitos anos.
Devemos entender que o partido de Le Pen é um partido de extrema direita racista, não é um partido fascista, no sentido histórico da palavra. Esse populismo de extrema direita é uma velha tradição na França, mas diferentemente dos fascistas, eles não possuem milícias armadas.
E a extrema direita avança na Europa por responsabilidade da esquerda. Em colégios eleitorais que historicamente votaram pela esquerda, é possível ver trabalhadores dizendo que irão votar por Le Pen para dar um 'pé na bunda' em todo mundo ou porque querem testar, já que ela nunca esteve no poder.
É uma postura antissistema de direita, similar ao que vemos na América Latina. Marine Le Pen sabe muito bem o país em que está, conhece a natureza do seu eleitorado. A maioria das suas propostas são de corte social. Enquanto Macron propõe aumentar a idade de aposentadoria de 62 para 65 anos, ela propõe diminuir para 60 anos e aumentar os salários.
Edição: Arturo Hartmann