Há muitas maneiras de dar um golpe — ou um autogolpe — de Estado. No Brasil, o ex-presidente Jair Bolsonaro tentou desacreditar as eleições para se manter no poder. O mesmo fez o ex-presidente americano Donald Trump. Bolsonaro demonizou as urnas eletrônicas. Trump, a votação por correio. Ambos atacaram a democracia por meio do ataque às urnas.
Em Israel, Benjamin Netanyahu foca em outra cláusula da cartilha dos ditadores para afrontar a democracia e promover um possível autogolpe para chamar de seu. Ele não deslegitima as eleições. Aposta, com todas as forças, no ataque ao Poder Judiciário. Bolsonaro e Trump também atacaram, mas focaram na questão das urnas. Netanyahu não fez o mesmo.
O primeiro-ministro de Israel está prestes a promover uma reforma judiciária de dar medo em qualquer pessoa que preze a democracia. A possibilidade fez com que mais de 80 mil (dizem 100 mil) israelenses saíssem às ruas de Tel Aviv, Jerusalém e Haifa no sábado passado, 14 de janeiro, para denunciar o possível fim da democracia israelense no ano em que o país completa 75 verões.
Se a reforma passar, o governo poderá anular com facilidade decisões da Suprema Corte com uma votação de maioria simples no Knesset, o Parlamento — ou seja, apenas 61 dos 120 parlamentares. Quer dizer: é só ter uma coalizão — no caso, a dele com 64 — para poder bloquear as decisões do Supremo. E como Netanyahu acha que ele é invencível nas urnas, é contraproducente atacá-las. O melhor é mesmo acabar com um dos Poderes da democracia.
O objetivo de Netanyahu, Bolsonaro e Trump é o mesmo: se manter no poder e evitar condenações na Justiça. Mas Netanyahu, velho de guerra, sabe que manter um certo verniz democrático é importante. Ele quer entrar para os livros de História como um líder amado por Israel e respeitado pelo mundo. E, para isso, seus passos de autogolpe são bem mais sutis.
É por isso que ele condenou o vandalismo em Brasília do dia 8 de janeiro. Demorou dois dias, mas condenou veementemente com a seguinte nota:
“Israel condena os violentos distúrbios de domingo em Brasília e apoia as instituições democráticas e o Estado de direito do Brasil. Não há espaço para protestos violentos em uma democracia e a vontade do povo, expressa nos resultados das eleições, deve ser respeitada”, escreveu Netanyahu.
Vamos destrinchar a postagem. Primeiro, se alguém achava que Bibi se manteria fiel a seu amigo Bolsonaro, errou. Ele fez o mesmo com outro ex-amigo, Donald Trump. Foi um dos primeiros a congratular o presidente Joe Biden, nos EUA, após a votação que Trump ainda não admite que perdeu. Netanyahu é pragmático. Pensa nele mesmo.
Segundo: Se aceitasse a alegação dos colegas do Brasil e dos EUA de que as urnas foram fraudadas em prol de opositores, teria que admitir que podem ter sido fraudadas em seu favor, em Israel. Ele venceu. Não pode colocar eleições em dúvida.
Terceiro: Bibi Netanyahu não gosta de protestos e quebra-quebras. Se justificasse o vandalismo em Brasília, teria que aceitar um possível vandalismo em Israel contra ele. Netanyahu sabe que vão ocorrer muitos protestos em Israel contra a reforma jurídica e todas as outras medidas que seus polêmicos ministros ultra nacionalistas, extremistas, misóginos, anti-LGBTQI+ e anti-palestinos estão realizando. Vai que uma turba de oposição se inspire nos bolsonaristas e invada o Knesset, ou sua casa na Rua Gaza, em Jerusalém?
Não. Netanyahu precisava condenar o que aconteceu em Brasília. Pegaria muito mal se não o fizesse. Mesmo tendo o mesmo objetivo de Bolsonaro e Trump, ele é mais sutil, mais inteligente, mais paciente, mais estratégico. Seu novo governo tenta “passar a boiada” sobre a maioria secular israelense, os progressistas, os tolerantes e os humanistas. Mas Netanyahu tenta manter a pinta de democrata.
O quarto e último ponto da nota de condenação de Netanyahu é o mais interessante. Ele escreveu que “a vontade do povo, expressa nos resultados das eleições, deve ser respeitada”. Esse ponto é fundamental na retórica do Likud e seus apoiadores.
Depois da manifestação deste sábado, Netanyahu disse que a maior manifestação popular aconteceu em novembro, nas urnas. Ele chamou as eleições de “mãe das manifestações”. Esse é o argumento que ele está usando para desqualificar os protestos anti-governo dos israelenses que não compactuam com sua coalizão de extrema direita. A de que o povo o escolheu e ponto final.
Eis aí o cerne da questão. Netanyahu e seus amigos têm uma visão muito particular do que é democracia. Para eles, democracia é apenas aquele conceito básico grego de 2,5 mil anos atrás: o povo vota em representantes e esses representantes podem fazer tudo em nome do povo. É a democracia direta. A noção de que a democracia evoluiu e atualmente inclui a noção de Três Poderes passa longe.
Para Netanyahu, se um governante é eleito, ele pode tudo. Nada desse princípio chato de pesos e contrapesos, de que há três poderes que podem limitar ou controlar os outros dois, criando um equilíbrio. Seus asseclas são ainda piores. São ignorantes mesmo. Perderam essa aula de “Educação moral e cívica”.
Minha filha de 15 anos aprendeu o que é democracia na escola, há algumas semanas. Ela sabe mais do que os “talking heads” do governo Netanyahu que ficam dando entrevistas nas TVs e rádios repetindo a mesma ladainha: “O povo escolheu essa coalizão e ela deve ter o mandato de fazer o que quiser”.
A nota de Netanyahu condenando o que aconteceu em Brasília diz tudo sobre como Netanyahu pretende fazer sua tentativa de autogolpe: colocando as eleições que ele venceu em um pedestal e deslegitimando os outros pilares da democracia moderna