A turba de extrema-direita que invadiu o Palácio do Planalto, o Congresso e o Supremo Tribunal e vandalizou os prédios na Praça dos Três Poderes, no dia 8 de janeiro, demandava uma “intervenção militar” no Brasil. Eles haviam montado acampamentos em frente a quartéis do Exército por todo o País desde novembro, pedindo que os militares revertessem a eleição do presidente Luiz Inácio Lula da Silva. No dia 11 de novembro de 2022, os comandantes das Forças Armadas soltaram uma nota dando guarida aos acampamentos – não só física, mas também legal. É importante sublinhar dois elementos daquele documento: primeiro, os comandantes declaravam, por meio de uma incoerente interpretação, que os acampamentos golpistas eram legais, porque os manifestantes eram pacíficos, e que “tanto eventuais restrições a direitos, por parte de agentes públicos, quanto eventuais excessos cometidos em manifestações” seriam condenáveis, apesar de ser crime exigir que os militares dêem um golpe de Estado (Artigo 286). Na prática, os comandantes das três forças atuavam ali como intérpretes constitucionais, defendendo a legitimidade democrática dos acampamentos golpistas e dizendo, antecipadamente, que qualquer medida tomada pelas instituições contra os acampamentos seria por eles considerada ilegal.
O segundo elemento da nota é a referência ao conceito de Poder Moderador. Reafirmando seu compromisso com o povo brasileiro, os comandantes diziam que as Forças Armadas estiveram “sempre presentes e moderadoras nos mais importantes momentos de nossa história”. O Poder Moderador foi introduzido na Constituição de 1824, com base nas ideias do francês Benjamin Constant, que vaticinava que para evitar a “anarquia” que havia marcado a separação dos Poderes, seria necessário conceder a um deles (no caso brasileiro, o monarca), um quarto poder, capaz de resolver divergências institucionais.
No dia 2 de janeiro, quando o ministro da Defesa de Lula, José Múcio, declarou que considerava os acampamentos uma “manifestação da democracia”, e que tinha “amigos e parentes” nestes acampamentos, ele só repetia o que as Forças Armadas vinham dizendo desde novembro.
O Brasil tem uma longa história de intervenção militar na política. A república brasileira foi fundada através de um golpe militar em 1889. De lá até 1989, o Brasil experimentou pelo menos 15 tentativas de golpes de estado, das quais cinco foram bem-sucedidas: incluindo uma ditadura militar de 21 anos. Após a queda da ditadura, em 1985, havia entre os brasileiros a expectativa de que o controle civil fosse estabelecido sobre os militares e que prevalecesse entre eles o respeito à democracia. Mas o próprio processo de redemocratização foi controlado pelo governo militar cessante, por meio de uma “abertura política lenta, gradual e segura”, nas palavras do então presidente militar Ernesto Geisel, e a pressão do Exército sobre a Assembleia Constituinte que redigiu a Constituição de 1988 garantiu-lhes o papel de “[garantidores] dos Poderes e defensores da Lei e da Ordem”.
Durante os dois primeiros mandatos de Lula (de 2003 a 2011) como presidente, os militares adotaram uma estratégia de lobby ao lidar com o governo. Desde o impeachment da ex-presidente brasileira Dilma Rousseff em 2016, no entanto, eles parecem ter voltado à linha de frente da política. Começaram a surgir, sem punições, declarações golpistas entre os militares da reserva e da ativa, e até mesmo o então comandante das Forças Armadas, general Eduardo Villâs Boas, afirmou “repudiar a impunidade” em um tuíte quando o STF se preparava para decidir sobre um pedido de habeas corpus impetrado por Lula em 2018. Mais tarde, Villâs Boas descreveria seu tuíte como um “alerta”. O Exército assumiu cargos importantes no governo do ex-presidente Michel Temer e ampliou sua participação política no governo do ex-presidente Jair Bolsonaro, além de ameaçar continuamente o processo eleitoral em 2022.
No dia 8 de janeiro, enquanto os prédios governamentais em Brasília eram vandalizados pela multidão enfurecida, um decreto de Garantia da Lei e da Ordem (GLO) foi discutido e 2.500 militares foram mobilizados, prontos para responder à escalada da situação. Se tal decreto tivesse sido assinado, as Forças Armadas seriam responsáveis por controlar a segurança da capital federal do Brasil. Lula, ao contrário, decretou uma intervenção federal “na área de segurança do Distrito Federal”, nomeando Ricardo Capelli, secretário-executivo do Ministério da Justiça, para comandá-la. Posteriormente, o presidente declarou que se tivesse feito uma GLO, “então estaria acontecendo o golpe que essa gente queria”.
O envolvimento dos militares nos atos de 8 de janeiro está sendo investigado. Muitos membros da reserva das Forças Armadas participaram dos atos. Também estão sendo investigados os motivos pelos quais o Batalhão da Guarda Presidencial, batalhão do Exército responsável pela segurança do Palácio do Planalto, não impediu que os manifestantes invadissem a sede do governo. “Teve muito gente conivente. Teve muita gente da PM conivente. Muita gente das Forças Armadas aqui dentro conivente. Eu estou convencido que a porta do Palácio do Planalto foi aberta para essa gente entrar porque não tem porta quebrada. Ou seja, alguém facilitou a entrada deles aqui”, disse Lula.
Após a instauração da intervenção federal, as forças de segurança, comandadas pelo interventor Ricardo Capelli, reprimiram e prenderam os manifestantes golpistas. O Exército mobilizou veículos blindados para bloquear e impedir que a polícia entrasse no acampamento e prendesse os responsáveis no dia 8 de janeiro. Segundo o Washington Post, o comandante do Exército, general Júlio César de Arruda, disse ao ministro da Justiça, Flávio Dino: “Você não vai prender as pessoas aqui”. A polícia só foi autorizada a entrar no acampamento no dia seguinte.
Este incidente é apenas uma manifestação do que as Forças Armadas vêm dizendo desde novembro de 2022: que se consideram um Poder Moderador e que não permitirão – mesmo após a destruição de 8 de janeiro – que “agentes públicos” pratiquem qualquer ato que considerem uma “restrição de direitos” dos golpistas.
O Exército deu guarida aos golpistas antes e depois de vandalizarem os prédios de Brasília e enquanto pediam uma intervenção do Exército contra o presidente. Ao mesmo tempo, não foi capaz de proteger o palácio presidencial de tal multidão. Isso envia uma mensagem clara sobre quem o Exército estava tentando defender e o que considera sua verdadeira missão.No Brasil, torna-se cada vez mais urgente que as massas, que gritavam em coro “Sem anistia!” para Bolsonaro durante a posse de Lula em 1º de janeiro de 2023, incluam os militares em sua demanda.