A parte que fica no Sudão

Diário Carioca
Sudão - Acervo Pessoal

Foi em novembro do ano passado que comecei em meu primeiro projeto em Médicos Sem Fronteiras (MSF), com uma proposta de ficar seis meses no Sudão. Sou pediatra e saí de São Paulo já com a perspectiva de encarar uma realidade completamente diferente da que estive acostumada.

Fui para o projeto de Um Rakuba, que atende principalmente o campo de refugiados que tem o mesmo nome. Localizado próximo à fronteira da Etiópia, o campo recebe desde 2020 refugiados etíopes oriundos da região do Tigré. Eles são forçados a fugir dos conflitos internos locais na esperança de dias melhores. Além de atender os refugiados, o hospital de MSF também recebia a população sudanesa que, frente a um sistema de saúde colapsado, encontrava ali os cuidados médicos que buscavam.

Chegar em Um Rakuba não foi fácil. Meu acesso se deu pela capital, Cartum, e de lá uma viagem de oito horas em direção à fronteira. Nossa base era o último lugar conhecido pelas equipes que vão atuar no projeto, já que os profissionais normalmente não avançam até a fronteira.

O hospital rural construído em tendas acolhia crianças e adultos. A rotina como pediatra constituía em atender casos de desnutrição grave, malária, outras doenças infecciosas, anemia falciforme e o setor de maternidade, onde estavam internados bebês nascidos na unidade, assim como aqueles que nasciam em casa e chegavam com infecção ou desnutrição. Os profissionais locais eram tanto sudaneses quanto etíopes.

Para alguns desafios, achei que tinha me preparado. Como lidar diariamente com a frustração de viver em um mundo onde uns têm tanto, enquanto outros têm tão pouco. Outros desafios me pegaram de surpresa, como as mudanças de alimentação ou até o calor extremo.

Mais do que isso, diariamente convivia com pessoas de coração enorme, profissionais muitos dedicados. E grande parte deles era formada por refugiados, que ao terminar o expediente se dirigiam às suas casas erguidas em tendas provisórias.

Era no café, no intervalo do trabalho, que eu escutava dos colegas relatos de trajetórias inimagináveis para mim, nas quais um dia se viram obrigados a abandonar tudo e partir em direção ao desconhecido. Uma situação em que preservar a própria vida e a dos familiares se tornava a única prioridade. A paz é um privilégio imensurável, eu pensava.

Em 15 de abril, tudo mudou. Um conflito instaurou-se no Sudão. Ainda que a tensão política fosse constante há anos, foi inesperado para mim. Explosões e tiroteios ocorriam na capital e em outras regiões, enquanto observávamos aflitos à distância, pensando nos colegas que ali moravam, e sem saber se o conflito chegaria ou não até nossa remota moradia.

Dali, os dias foram passando sem muito sinal de resolução. Ouvíamos da capital que nossos colegas se encontravam em abrigos e que no oeste do país os conflitos aumentavam. Da nossa parte, nos sentíamos seguros. Porém, os efeitos colaterais chegaram rápido e devastadores. As medicações não chegavam até nós e os depósitos de suprimentos estavam inacessíveis. De um dia para o outro, a rotina do hospital teve que ser modificada. A unidade passou a atender apenas emergências, e as atividades foram drasticamente reduzidas.

Um grande suspiro de alívio veio quando os colegas da capital conseguiram ser evacuados e foram ao nosso encontro – ao mesmo tempo em que os colegas de Darfur, no Oeste, encontravam seus refúgios. E, em uma grande operação de Médicos Sem Fronteiras, saímos em segurança do Sudão, pela fronteira que acreditávamos que nunca cruzaríamos.

Hoje, o projeto ainda existe. O hospital funciona na medida do possível. Se o Sudão já era um país com extrema necessidade de ajuda humanitária, o futuro parece reservar novos e grandes desafios. A equipe de profissionais internacionais que ficou no país estuda diariamente formas de ampliar os serviços novamente e responder às novas demandas do Sudão.

A minha atuação no projeto terminou perto de completar seis meses, porém de uma forma completamente diferente da esperada. Vi na prática o que já imaginava de MSF: as ações de saúde mudam a vida daquela comunidade. Uma vez escutei por lá que onde há a bandeira de MSF, há esperança. Diariamente, aprendi muito com as pessoas onde trabalhei, desde a alegria sem esforços das crianças que brincavam na rua até a força da comunidade que se unia para seguir em frente.

Uma parte de mim ficou por lá, pensando nos sudaneses que anseiam pela resolução desse conflito, nos etíopes que buscam alguma perspectiva de vida, nos meus colegas de MSF que ficaram no Sudão. A paz é um privilégio imensurável.

Fernanda Mota, médica de MSF no projeto do Sudão

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Equipe de jornalistas, colaboradores e estagiários do Jornal DC - Diário Carioca