Outsider

Ray Cunha

BRASÍLIA, 6 DE AGOSTO DE 2023 – Tenho sido um estranho no ninho. Até hoje, quando alguém toma conhecimento de que procuro me levantar às 4 horas para escrever, me olha com pena. E quando são informados de que nunca ganhei dinheiro para valer fazendo isso, aí é que me olham como se eu estivesse definitivamente condenado. Não ligo, pois o prazer de me encontrar com a madrugada, com o silêncio, com os sons que só ouvimos por meio dos tímpanos espirituais, esse prazer é simplesmente incrível.

Desde cedo percebi que sou outsider. Poderia traduzir essa palavra como estranho, mas outsider, em inglês, é mais específica: significa um indivíduo que não pertence a um determinado grupo; no turfe, trata-se de um cavalo com remota possibilidade de vencer. É o meu caso. É claro que todos nós, escritores, desejamos, ardentemente, pagar as contas com dinheiro proveniente da venda de nossos livros, mas sempre soube que a possibilidade de me tornar um escritor conhecido é remota. Porém, curto minha vida do modo como dá. Mas sou feliz, porque sou fiel a mim mesmo. Minha igreja sou eu; oficio a missa, como a hóstia e bebo o vinho.

Isso eu sempre fiz. Curto adoidado. Também levo a vida com estoicismo. Nunca reclamo. Se alguém me ouvir gemer é porque estou à morte. Em 13 de novembro de 2019, sofri um infarto, mas consegui chegar andando no hospital e logo depois desmaiei. Também peguei o vírus chinês, uma ou duas vezes.

Vivo tão loucamente, desde que nasci, em 7 de agosto de 1954, que não sei como ainda estou vivo. Comecei a beber cedo. Aos 14 anos chegava a desmaiar de tanta cachaça. Só não morri bêbedo porque há anjos que me salvam. É claro, se me salvam é porque há uma razão para isso. Nada é por acaso. Hoje, não bebo mais; nem Cerpinha enevoada no sétimo andar de um hotel cinco estrelas.

Adoro ler. Desde os cinco anos de idade. Acabei de ler O Outsider – Minha Vida na Intriga, de Frederick Forsyth. É o tipo do sujeito que teve toda a sua vida conduzida para a literatura. Ele fez todo tipo de coisa que achou importante para ele mesmo, e sempre teve apoio do seu pai. Meu pai era ainda mais outsider do que eu, mas recebi dele coragem, aquele tipo de coragem que chega a ser ingênua; disciplina para trabalhar e responsabilidade para procurar, de alguma forma, defender os mais fracos. Meu pai também lia muito.

Aos 17 anos, peguei a estrada. Era o ano de 1972, em Macapá. Até então, só saíra da cidade para ir a Belém do Pará, que me pareceu outro planeta que descobrimos de repente e percebemos que não é um sonho, que estamos lá mesmo. Eu era um adolescente inquieto e ocupado na minha tentativa inicial de me tornar escritor. Mas os estímulos que eu recebia eram na mesa dos bares, de pessoas na mesma situação que eu. Assim, um dia, peguei um barco, fui para Belém, e, de lá, para o Rio de Janeiro.

A estrada durou dez anos. Rio, Buenos Aires, Santarém, Manaus, Rio Branco, Belém novamente, onde, estimulado por um anjo, me graduei em Jornalismo pela Universidade Federal do Pará, em 1987, doze anos depois de ter começado nessa profissão como repórter policial do Jornal do Commercio de Manaus.

Na estrada, encontrei muita gente interessante. Quando somos jovens – jovens são belos e imortais – todos querem ajudar, especialmente as mulheres. Assim, fui amado por deusas. Também encontrei homens que me apontaram algumas portas, que me ensinaram alguns truques, e me ajudaram a entender uma coisa: ser outsider é chegar ao poder de oficiar a própria missa. 

Em Macapá, latejam minhas raízes, mas hoje meu portal para mergulhar fundo na cidade é o escritor Fernando Canto, da mesma idade que eu e que também trilha a estrada azul. Comemos e bebemos como sátiros e conversamos dias a fio, e rimos demais. As mulheres que povoaram minha adolescência sumiram; deixaram um rastro de perfume. A dama azul, Alcinéa Maria Cavalcante, recolheu-se em meio a suas flores e se confundiu com elas.

Devorando um galinho de jambu e um camarão pitu numa cuia de tacacá criada por Olivar Cunha e batendo papo com Fernando Canto é que curto o outsider que vive em mim, capaz de sentir o perfume dos jasmineiros chorando nas tórridas noites de Macapá, de ouvir sons que vêm do Caribe e vislumbrar uma negra de olhos verdes sob um vestido de seda branca – elas surgem assim, para mim, e tudo o que tenho a fazer é pô-las nas minhas histórias.

Às vezes, percebo vultos se movendo perto de mim; sei que são mortos; estão aqui para me ajudarem, para me apontarem a direção a tomar, o rumo que devo seguir, orientam-me na minha nova profissão de terapeuta, monge taoísta, iniciado em Medicina Tradicional Chinesa. Quanto ao jornalismo, faço como todo mundo; hoje, a comunicação social é pessoal e global ao mesmo tempo. Os barões da mídia, dos balcões de negócios, das negociatas, da política, se encontram no beco das máfias, do narcotráfico.

Forsyth viveu da intriga internacional. Foi jornalista até descobrir que tinha nas mãos material de primeira categoria para criar suas histórias, e foi o que fez. Britânico, cedo aprendeu também francês e alemão, e depois espanhol e russo, e esteve em muitos lugares interessantes e conheceu muita gente influente. Isso fez dele um outsider de sucesso. Todos nós somos o que somos e temos o que conseguimos obter. Recebi dos deuses as antenas que me conectam com o astral.

Posso ser o cavalo no qual ninguém aposte, que participa da corrida para fazer número, que está destinado a produzir sêmen ou virar charque, mas ainda estou no páreo.

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Por Ray Cunha
Escritor, jornalista e terapeuta em Medicina Tradicional Chinesa.