Argentino radicado no Brasil desde 1983, o biólogo e professor da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFGRS), Ignacio Benites Moreno coordena um projeto sobre uma interação da natureza que parece ter saído de um fantástico livro de fábulas: homens e botos juntos pescando cardumes de tainhas. O fenômeno raríssimo só ocorre em duas regiões do mundo: no estuário do município de Laguna, Santa Catarina, e na Barra do Rio Tramandaí, no Litoral Norte do Rio Grande do Sul. Tão singela e delicada, essa interação está sujeita a impactos negativos como a poluição marinha, a especulação imobiliária, a degradação ambiental e a desvalorização do pescador artesanal.
O projeto Barra dos Botos tem por base quatro pilares que visam proteger essa ação singular: monitoramento dos botos, gestão, fortalecimento da pesca artesanal e educação ambiental.
A experiência mudou tanto a vida de Ignacio Benites que, quando foi estudar biologia só acreditava nos bichos. Hoje, ele observa a vida e o mar de outro jeito. “Quando conheci a pesca cooperativa, entendi que o ser humano era parte do problema ambiental, mas também parte da sua solução. Hoje, quando vou à Barra fotografar, não consigo fazer um registro que não tenha um componente humano.”
O Oceana Entrevista conversou com o professor que detalhou o projeto e a importância de protegê-lo.
Como surgiu o projeto em torno dessa interação entre botos, tainhas e pescadores?
Acompanho a pesca cooperativa desde 1992 quando entrei na faculdade e fiz uma saída de campo para o litoral. Ali, fiquei sabendo da existência da pesca cooperativa, mas não tinha tanta noção. Na época, tinha uma vontade de trabalhar com mamíferos marinhos e, junto aos colegas de faculdade, criamos uma ONG para monitoramento de praia, acompanhando os pescadores. Naquele momento, estávamos interessando na toninha, que é um pequeno golfinho. Então, estava ali na Barra e tinha uma máquina fotográfica registrando tudo. Em 2009, voltei como professor no curso de Biologia Marinha na UFGRS e reencontrei os pescadores dos anos 1990, que me avisaram que a pesca cooperativa estava em risco porque, durante o verão, havia aquela confusão de lanchas recreativas, jet ski e surf. Os botos não paravam mais na Barra, o pescador não se sentia valorizado e muitos ameaçavam largar a profissão. Levei essas demandas para a universidade. Ali, com alunos que orientava, decidimos fazer algo pela Barra. Assim, em 2012, sentimos a necessidade de criar algo mais formal e o projeto foi desenhado com os quatro pilares: monitoramento da população de botos, fortalecimento da pesca artesanal, gestão e educação ambiental. Em 2015, conseguimos nosso primeiro financiamento e seguimos com várias ações, ouvindo sempre os pescadores.
Essa pesca cooperativa tem aspectos que precisam ser preservados para que siga em sua potência?
A interação entre seres humanos e animais selvagens é rara no mundo. Com cetáceos, ocorre em poucos lugares. De forma ativa, só acontece na Barra e em Laguna. De forma intermitente, em Torres e Araranguá. Em Rio Grande se perdeu. É uma interação frágil do ponto de vista ecológico, onde duas espécies, humana e inumana se juntam e coordenam as ações para se beneficiar na captura do alimento. É, portanto, um patrimônio da humanidade. Para acontecer, precisa ter três elementos: um animal predisposto a se acercar o homem, um ser humano predisposto a se acercar o animal e um ambiente propício. Nós temos botos que atuam na Barra há 40 anos. O Geraldão, por exemplo, que, quando teve o primeiro filhote, virou Geraldona e, hoje, nada com cinco crias na Barra e pesca com seus netos. Os pescadores conhecem todos os botos, pelo jeito e parentesco, pela forma de pescar e mostrar o peixe. São animais selvagens e não domesticados, não são obrigados a pescar, entram na Barra e conhecem os pescadores. Os botos cercam os cardumes, aproximam da margem, fazem o sinal, o pescador que conhece a dinâmica sabe a hora de jogar a tarrafa. Então é algo único, que precisa ser preservado, patrimônio que temos que manter e existe aqui há pelo menos um século (há registros orais de 1900).
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Quais os principais impactos que os botos, pescadores e tainhas sofrem hoje em dia?
A degradação ambiental e o crescimento urbano desordenado são dois deles e afetam as pequenas cidades litorâneas como Tramandaí e Imbé cujos gestores alimentam a especulação imobiliária e querem criar obras sem pensar no crescimento sustentável, a exemplo do projeto de uma ponte a ser erguida bem no local onde os pescadores e botos realizam essa pesca. Há ainda a desvalorização do pescador. Com a especulação imobiliária, os pescadores acabam por deixar as suas casas que eram em lugares nobres, pois cobra-se IPTU cada vez mais caro. Isso tudo ocorre num ambiente com estuário frágil em pleno o século 21, onde sabemos que se não mudarmos de atitude o ser humano seguirá sendo fortemente prejudicado. A gente luta para preservar e convencer que os botos têm forte apelo turístico e social.
Dentro dos quatro pilares do projeto, qual é o mais importante dentro desse delicado equilíbrio?
Uma das coisas que deu certo no projeto foi ouvir os pescadores e entender o que eram necessário para a preservação. Então há uma sinergia entre esses pilares por conta dessa relação. Esses quatro pilares são imprescindíveis porque se interligam e sem um deles a pesca cooperativa não funcionava. A gente trabalha com o fortalecimento da pesca e a busca de políticas públicas, por exemplo, para empoderar o pescador e evitar o comércio ilegal. A pesca cooperativa não existiria se não fosse essa gestão. Estamos, agora, enfrentando a pesca ilegal do bagre, que está ameaçado extinção, e há pessoas colocando redes na boca da Barra e, no passado, capturaram golfinhos conhecidos. Isso prejudica os botos e a sua entrada na Barra. O monitoramento dos botos também é fundamental para descobrir informações científicas sobre o comportamento da espécie, como usam a área, a adaptação local da família dos indivíduos.
Qual a sua relação com o mar e o que mudou em sua percepção sobre o oceano em estar diante da pesca cooperativa?
Nasci na Argentina, em Buenos Aires, no centro, no meio de edifícios e perto do zoológico. Jogava bola na rua, minha diversão era na calçada. Tinha uma tia que morava no Brasil e, em 1982, fomos visitá-la. Houve um encantamento pelo Brasil. Em 1983, a gente se mudou e formos morar em Porto Alegre, perto do Rio Guaíba. Tinha uma natureza ali, tomava banho no rio, via o pôr do sol da sacada da minha casa e a natureza entrou mais facilmente na minha vida. Com 14 anos, sabia que queria estudar a vida marinha, queria ser biólogo. Fui mergulhar e o interesse pelo mar se tornou natural. Entrei na faculdade, com esse interesse em estudar os mamíferos marinhos e fomos trabalhar com o mar. Entrei na biologia porque não gostava de seres humanos. Queria estudar os bichos e achava que o ser humano deveria desaparecer do mundo. Quando conheci a pesca cooperativa, entendi que o ser humano era parte do problema ambiental, mas também parte da sua solução. Hoje, quando vou à Barra fotografar, não consigo fazer um registro que não tenha um componente humano.