Há 11 anos, um grupo de famílias sem teto ocuparam um prédio vazio à Cinelândia, no centro do Rio de Janeiro, então pertencente ao Instituto Nacional do Seguro Social (INSS). Hoje, na entrada do edifício, há um banner do governo federal onde se lê: requalificação de imóvel público para habitação de interesse social. O diálogo entre os ocupantes e o Poder Público proporcionou a concretização do sonho da casa própria.
Organizadas pelo Movimento Nacional de Luta por Moradia (MNLM), 42 famílias vivem no local batizado de Ocupação Manuel Congo em homenagem ao negro que liderou uma rebelião de escravos no Vale do Paraíba. O imóvel, com entrada na Rua Alcindo Guanabara, já está devidamente dividido em apartamentos e em breve os moradores irão assinar contratos de concessão do direito real de uso junto ao Instituto de Terras e Cartografia (Iterj), vinculado ao governo do Rio de Janeiro. Eles terão direito a usufruir do espaço inicialmente por 90 anos, período que pode ser prorrogado no futuro.
“Não estamos falando de transferir propriedade. É uma concessão de uso para a família, o que é prevista na legislação. Temos a obrigação de cuidar. Mas não pode alugar, vender ou abandonar”, explica Lurdinha Lopes, integrante da coordenação do MNLM. Segundo ela, o acordo é também interessante para o governo, pois manter o prédio abandonado tem custos. Embora o edifício continue pertencendo ao Estado, as famílias assumem a obrigação de dar manutenção e deixar em dia as contas do imóvel.
Todo o processo de regularização da Ocupação Manuel Congo passou pelo programa Minha Casa, Minha Vida – Entidades, uma modalidade do programa federal criado em 2009. O sonho da casa própria começou a se desenhar quando o imóvel, já ocupado, foi transferido ao governo do Rio de Janeiro, por meio do Iterj. O INSS foi ressarcido em R$ 914 mil com recursos do Fundo Nacional de Habitação de Interesse Social. Já as obras, orçadas em R$ 3,847 milhões, foram financiadas com recursos do Fundo de Desenvolvimento Social, administrado pela Caixa Econômica Federal, instituição financeira responsável pela execução do Minha Casa, Minha Vida.
De acordo com informações no site do Iterj, os próprios moradores da Ocupação Manuel Congo puderam contratar a construtura e ser responsáveis pela execução da obra por meio de mutirão. “Todo esse envolvimento da comunidade na execução também permite que cada unidade habitacional seja única”, diz texto publicado pelo órgão.
A modalidade Entidades do programa federal viabiliza o acesso à moradia para as pessoas organizadas por meio de cooperativas habitacionais, associações e entidades privadas sem fins lucrativos. O processo de escolha dos beneficiados deve ser transparente, com critérios pré-definidos, e a entidade precisa estar habilitada pelo Ministério das Cidades.
Lurdinha Lopes conta que em 2007, antes da ocupação, grande parte dessas famílias morava em casas de parentes ou de aluguel na periferia da cidade e nas favelas. Muitos não tinham condições de pagar as contas, acumulavam dívidas e estavam sob ameaça de despejo. “A maioria das pessoas estava desempregada. Hoje se formos fazer uma pesquisa, seguramente constataremos que a maioria está empregada ou pelo menos possui um bom bico que dá condições mínimas de sustento da família. Estar no centro da cidade e não na periferia ajuda bastante”.
Com a reforma, já foram concluídas as instalações para individualizar as contas de água, luz, gás e telefone, o que deve ocorrer em breve. A abertura de contas separadas por apartamento depende agora da aprovação dos serviços pelas concessionárias. Por enquanto, são emitidos boletos englobando o consumo de todo o edifício. Para quitá-los, há um valor de contribuição que é definido em reunião do MNLM e das famílias.
Atualmente, a taxa varia entre R$ 65 e R$ 130 mensais de acordo com o tamanho do apartamento. “Temos que manter tudo limpo e nós não temos dinheiro de condomínio. A taxa ajuda a estabelecer um padrão mínimo de higiene. E é também para manter luz, água e esgoto”, afirma Lurdinha.
Segurança
O incêndio e desabamento do edifício Wilton Paes de Almeida, no centro de São Paulo, levantou um debate acerca dos riscos de novas tragédias em imóveis ocupados. Lurdinha Lopes conta que as ocupações começam a ser planejadas um ano antes. A mobilização também envolve a criação de brigadas de infraestrutura para tentar garantir a segurança.
“Só ocupamos um espaço quando a brigada visita e diz que está ok para entrar. A bomba de água, o relógio de luz, tudo isso é verificado antes e, às vezes, fazemos reparos. A disciplina é essencial. Se a brigada disser pra não passar do oitavo andar, ninguém vai passar. Mexer no relógio só com autorização”.
As regras também são definidas coletivamente. Na Ocupação Manuel Congo, há uma escala para a portaria que funciona quase 24 horas e envolve todos os maiores de 18 anos. Crianças até 14 anos só podem sair do prédio após às 20h com autorização dos pais. Além disso, as famílias fizeram um pacto e criaram uma carta de princípios que estabelece condições para a permanência na ocupação. Praticar violência contra mulher, por exemplo, é motivo para ser colocado para fora.
“Problemas acontecem, afinal todos são seres humanos. Quando você coloca pessoas que não se conhecem em um espaço verticalizado, você está armando uma bomba-relógio. Então as regras precisam ser construídas antes. Não adianta se mover unicamente com base na necessidade. Então discutimos o nosso imaginário de moradia digna, as dificuldades que poderemos encontrar e como enfrentar tudo isso junto. A unidade é a maior arma em uma ocupação e é preciso que todos entendam que as pessoas são diferentes, tem variadas concepções de mundo”, acrescenta.
Imóveis públicos
Sobre os edifícios públicos ocupados por sem-teto na cidade do Rio de Janeiro, o governo estadual informou que não existe nenhum imóveçl nesta situação e o município não retorno o pedido da reportagem. A Secretaria do Patrimônio da União (SPU), vinculada ao Ministério do Planejamento, Desenvolvimento e Gestão, disse que há na capital fluminense 195 imóveis federais, dos quais 11 não estão em uso. Não foram fornecidos dados sobre ocupações. O governo federal informou que irá analisar a situação dos prédios inativos no país.
Para Lurdinha, a destinação de edifícios públicos vazios para fins de moradia de interesse social poderia contribuir para a queda do déficit habitacional. “Existem imóveis que nem precisam de grande investimento. Ainda mais comparado com as cifras que aparecem nas notícias sobre corrupção. Já faz alguns anos que não damos início a novas ocupações aqui no Rio, mas eu conheço seguramente mais de 100 famílias ao meu redor que têm menos de dois salários mínimos de renda e que pagam aluguel. Vontade de organizar outra ocupação, não falta porque há muita gente que precisa”, analisa.
Assim como outros movimentos sociais que atuam pelo direito à moradia, o MNLM considera que a legitimidade das ocupações vem do artigo 5º da Constituição Federal, segundo o qual a propriedade privada deve atender sua função social, o que não seria o caso de imóveis vazios e sem utilização há vários anos. Além do antigo edifício do INSS, o movimento lidera outra ocupação no Rio de Janeiro, na Gamboa, também na região central. São 60 famílias vivendo desde 2011 também em um imóvel pertencente à União. Eles já conseguiram concluir a Fase 1 para a regularização, que envolve a elaboração de projetos e o alvará de obra. Há cerca de um ano, aguardam a liberação do governo federal para dar início às obras.