Três dias antes de o governo argentino declarar que todo o país entraria em isolamento social para contenção da pandemia do coronavírus, uma brasileira e uma equatoriana já vivenciavam uma quarentena forçada, motivada pela ação de vizinhos. Marlize Scheidt, de 35 anos, e a estudante Mishell Reinoso, de 23 anos, foram obrigadas a ficar 15 dias em confinamento total em seu apartamento, no bairro Parque Patricios, na capital Buenos Aires, apesar de não apresentarem nenhum sintoma da covid-19 e de não terem tido contato com infectados.
A história tem contornos de xenofobia e, ao longo do período de isolamento, as duas jovens foram intimidadas diversas vezes. Após receberem a visita da polícia, chamada por outros moradores do prédio, elas foram informadas que não poderiam mais sair do apartamento, nem mesmo para comprar itens essenciais. A justificativa dos vizinhos para acionar as forças policiais foi o fato de Mishell ter chegado de uma viagem e ter sido vista com uma mala na portaria do edifício. Ela havia ido ao México a trabalho, mas os moradores insistiam que a jovem vinha do Brasil, país que está na lista de restrições do governo argentino.
Minutos após a chegada da estudante, administradores do edifício foram ao apartamento duas vezes informar que elas precisariam ficar isoladas, sem apresentar respaldo de autoridades para as afirmações. Mesmo frente às explicações de que nenhuma das duas havia estado no Brasil recentemente, eles insistiram na determinação. Ao entrar em contato com a proprietária do imóvel, Marlize soube que não era a primeira vez que os vizinhos reclamavam da movimentação no apartamento dela. Na opinião deles, a jovem recebia muitos brasileiros no local.
“Falavam para ela que eu recebia muitas pessoas e que vinha muita gente diferente ao meu apartamento todos os dias. Ela me disse que queria entender que tipo de atividade eu fazia no apartamento. Eu respondi a ela que o que estava acontecendo era apenas a minha vida, eu recebendo meus amigos brasileiros, como qualquer pessoa normal pode fazer em sua casa. Isso me doeu muito. Sempre tocavam em algum ponto que tinha a ver com brasileiros”.
::Brasileiros contam como pandemia está alterando cotidiano de países da América do Sul::
Assustada com o tom e as reações da vizinhança, Mishell tentou deixar o local. Já em frente ao prédio, enquanto aguardava o motorista, foi surpreendida por um grupo de moradores que fizeram uma espécie de cordão de isolamento na porta do edifício e acionaram a polícia. Uma das vizinhas tentou até mesmo agredir Marlize fisicamente. Quando chegaram ao local, os agentes informaram às duas que elas precisariam retornar ao apartamento imediatamente e não poderiam mais sair.
As jovens tiveram que ser escoltadas até o imóvel e, apesar de confinadas, continuaram sofrendo constrangimentos. Durante todo o período, o sistema de gás do apartamento apresentou problemas e nenhum técnico pôde ser chamado. O cheiro de gás passou a incomodar a vizinhança e uma das moradoras chegou a sugerir que cortaria a energia do local. Marlize, que mora e trabalha na Argentina há três anos e meio, conta que foi justamente a receptividade e as oportunidades no país que a encantaram. Apesar de já ter presenciado situações de preconceito na rua, ela narra que nunca havia sido vítima de uma forma tão direcionada e cruel de preconceito.
“Muito rápido eu comecei a trabalhar. Eu vi que tudo era muito encantador. Essa cidade é linda! Eu consegui estudar. Muita coisa eu consegui realizar aqui que eu não conseguia realizar onde eu cresci e morava e, por isso, eu acabei optando por morar aqui. A cidade, de uma forma geral, é bastante aberta a estrangeiros e tem gente de muitos lugares diferentes”.
Confinadas e sofrendo ameaças diretas e veladas, as duas foram orientadas a procurar um advogado e passaram a não responder mais às provocações dos vizinhos. A sensação amarga de discriminação, no entanto, não passou.
“Antes eu pensava: ‘Não é nada, deve ser coisa da minha cabeça’, mas isso aconteceu pura e simplesmente por eu ter outra nacionalidade. Eu sempre tentei pensar: ‘Não, Marlize, não exagera, isso não está acontecendo.’ Mas aí doeu demais para eu continuar fechando os olhos. As pessoas estão sendo preconceituosas e eu preciso parar de fechar os olhos. Eu falei com muitos amigos brasileiros e muitos sofreram coisas parecidas. Tudo deixa muito claro que é o fato de eu ser brasileira”.
Desabafo nas redes
Um texto de uma amiga de Marlize no Facebook, um dia após o fato, reafirma a sensação de preconceito. Karen Amaral também é brasileira e vive na Argentina há sete anos, trabalhando e estudando.
“Sou mulher, estrangeira e migrante e a maioria das pessoas com quem me relaciono aqui também o são. Ontem uma amiga foi hostilizada por seus vizinhos por ser brasileira – o Brasil foi incluído na lista dos países de alto risco de contágio pelo governo argentino e todas as pessoas que chegam de lá são obrigadas a fazer quarentena. A minha amiga não sai da Argentina há meses, mas seus vizinhos dominados pelo pânico e cegados pelo preconceito decidiram que toda e qualquer atividade no seu apartamento era suspeita, chamaram a polícia e ela foi obrigada a fazer a quarentena. Minha amiga não tem um trabalho formal e recebe por dia. Serão 15 dias sem licença paga”, relata Karen em sua postagem.
Marlize desabafa: “Todos os monstros que estavam escondidos foram libertados com esse vírus. Todas as possibilidades de ser ruim e tentar exigir direitos que não fazem nenhum sentido apareceram. As máscaras caíram. É muito triste”.
Hoje, Marlize revê a decisão de permanecer na vizinhança e até mesmo no país. Ainda sem saber o que vai acontecer após o período de impedimento de viagens por causa do coronavírus, agora ela já pode pelo menos circular na rua para fazer compras essenciais. A quarentena total à qual foi submetida terminou na terça-feira (31), mas a sociedade argentina continua em isolamento social. Durante o tempo em que estiveram isoladas, nenhuma das duas jovens apresentou sintomas da covid-19.
Edição: Camila Maciel