Como um governo comunista no sul da Índia se tornou referência no combate à covid-19

Diário Carioca

Aglomerações, fome, falta de água para lavar as mãos. As notícias sobre a Índia que mais repercutem no exterior durante a pandemia retratam uma nação em plena crise humanitária. Embora sejam verdadeiras, elas não refletem a realidade de todos os 29 estados do país.

O cenário mais grave se encontra na região nordeste da Índia, em vilarejos isolados e nas favelas das grandes metrópoles. Por outro lado, há territórios em que o acesso à saúde pública e a bens de consumo é comparável a países desenvolvidos – e não se trata apenas dos bairros ricos da capital Nova Delhi.

O estado de Kerala, no extremo sul, por exemplo, tem o maior Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) do país: 0,790, considerado elevado pela Organização das Nações Unidas (ONU). A média indiana é 0,467 e a brasileira, 0,699. Quanto mais próximo de 1, melhores os índices de renda, educação e expectativa de vida.

Durante a pandemia, Kerala foi o primeiro estado a diagnosticar pacientes com coronavírus, e possui o melhor índice de recuperação de pacientes na Índia – 84%, considerando diagnósticos realizados entre 9 e 20 de março. O índice de recuperação em Delhi, por exemplo, é inferior a 5%.

Kerala fica a 2,6 mil km da capital e registrou três mortes em um total de 345 pacientes diagnosticados com o novo coronavírus.

Para entender por que as condições de enfrentamento à pandemia no estado destoam de outras regiões da Índia, o Brasil de Fato ouviu membros do Conselho de Planejamento de Kerala. O órgão foi criado em 1967 e reúne pesquisadores e cientistas de diferentes áreas para auxiliar o governo local na tomada de decisões.

Os conselheiros explicam que o sucesso no combate à covid-19 é resultado de medidas emergenciais tomadas nas últimas semanas, mas também de políticas públicas adotadas ao longo de décadas.

Legado

Doutor em Economia, o professor R. Ramakumar conta que Kerala foi o berço de vários movimentos sociais reformistas que questionaram as superstições e a opressão de casta, classe e gênero que dominavam a política indiana no final do século 19.

“Entre 1930 e 1940, esse legado se converteu na formação de partidos comunistas, que logo se tornaram muito populares”, lembra o membro do conselho. “Eles institucionalizaram uma mudança de consciência que já havia ocorrido em muitas comunidades, de dentro para fora”.

Kerala foi o primeiro território a eleger um governo comunista em toda a história, em 1947. Segundo Ramakumar, a prioridade na época eram os investimentos em educação, saúde e segurança nutricional. Para isso, o governo avançou em processos de reforma agrária, criando um sistema público de compra e distribuição de alimentos.

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“Essas mudanças foram tão profundas que, mesmo quando governos não comunistas assumiram o estado – nos anos 1980, por exemplo –, eles precisaram manter as políticas públicas de caráter progressista, porque essa demanda já estava enraizada na sociedade”, acrescenta o professor.

O modelo de desenvolvimento adotado em Kerala desde então é elogiado por intelectuais como Amartya Sen, prêmio Nobel de Economia. O atual ministro-chefe do estado – cargo equivalente a governador – é Pinarayi Vijayan, do Partido Comunista Indiano Marxista (CPI-M).

“É um governo de esquerda, muito responsivo às necessidades das pessoas, preocupado em proteger a economia e garantir a subsistência, especialmente, dos pequenos produtores”, orgulha-se Ramakumar. “E esse compromisso político foi rapidamente traduzido em respostas econômicas, logo nos primeiros dias [de pandemia]”.




Na fila para distribuição de comida, cidadãos esperam sentados a uma distância segura para evitar cansaço e aglomeração / Divulgação/CPI-M

Investimento público

Considerado um dos estados “mais globalizados” da Índia, Kerala tem 40 milhões de habitantes e quase meio milhão de trabalhadores fora do país. Para se ter uma ideia, o estado dispõe de quatro aeroportos internacionais, dois a mais que Delhi.

O fluxo intenso de passageiros ajuda a explicar por que os primeiros casos de coronavírus da Índia ocorreram em Kerala – vindos da China e da Itália. O estado foi pioneiro não só no diagnóstico, mas nas respostas econômicas à pandemia: um pacote de 20 bilhões de rúpias, o equivalente a R$ 1,3 bilhão.

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Ramakumar diz que o governo local nunca subestimou a covid-19 porque tem experiência recente com epidemias. Em 2018, um surto do vírus Nipah matou 17 pessoas no estado, que foi obrigado a decretar quarentenas em alguns distritos.

“Kerala enfrentou o Nipah e também já viveu várias inundações ao longo da história. Por isso, as pessoas são disciplinadas e o governo sabe do impacto que esse tipo de calamidade causa à economia”, analisa.

A estratégia foi abrir os cofres e gastar o necessário, da maneira mais ágil possível, para impedir demissões, garantir a sobrevivência das empresas e renda mínima aos trabalhadores. Basicamente, o governo investirá nos próximos três meses o valor que estava previsto para o ano todo.

“Esse investimento substancial vai valer a pena para a economia continuar girando e não quebrar lá na frente. Quem já passou por esse tipo de situação sabe que é este o momento de colocar dinheiro na mão das pessoas”, completa Ramakumar. “Quanto antes isso acontece, mais rápido a economia se recupera”.

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Professor do Instituto de Tecnologia de Delhi e também membro do conselho, Jayan Jose Thomas é especialista em temas relativos à indústria. Sobre as medidas emergenciais adotadas pelo governo de Kerala durante a pandemia, ele enaltece a decisão de distribuir uma quantidade mínima de alimentos para todos os cidadãos, não só os mais pobres, e o crédito liberado a pequenas empresas para evitar demissões.

Thomas diz que não se trata apenas de números, mas de uma abordagem humanizada que tem no bem-estar social um de seus pilares. Ele cita como exemplo as filas para distribuição de alimento durante a pandemia: em Kerala, as pessoas aguardam sentadas, e não em pé. Além disso, as cadeiras são dispostas a dois metros uma da outra, para evitar aglomeração e contágio.

Perspectivas

O pacote de mais de R$ 110 bilhões anunciado pelo governo central da Índia, na interpretação do professor Ramakumar, é insuficiente para suprir as necessidades dos estados. “De 5% a 6% naquele pacote são novos investimentos. O resto já estava previsto, em forma de crédito e auxílios, mas eles somaram para parecer maior do que é”, explica. “Por isso, os estados devem seguir o exemplo de Kerala e lançar seus próprios planos econômicos”.

Outro membro do conselho, especialista em políticas de descentralização, K. N. Harilal diz que mesmo os estados mais pobres não podem se negar a garantir a subsistência dos trabalhadores: “O que se deve fazer é fornecer subsídios e renda mínima. Isso muitos estados poderiam tentar adotar. Não é preciso liberar grandes montantes, mas ao menos garantir que todos tenham acesso aos serviços básicos e alimentação”, ressalta.

Embora o governo da Índia seja de extrema direita, as divergências com os ministros-chefes durante a pandemia não transparecem como no Brasil.

“Temos nossas discordâncias, mas, quando se trata de combater a covid-19, o governo central está assumindo uma posição diplomática e contribuindo para evitar conflitos”, enfatiza Harilal. “Os problemas que temos são de ordem financeira. Se fôssemos autorizados a emprestar um montante maior a juros baixos, seria muito melhor”.

A Índia investe apenas 1,28% do Produto Interno Bruto (PIB) em saúde, e a gestão é de responsabilidade dos estados. No pacote liberado pelo governo central, os benefícios de alimentação se restringem aos portadores de cartões de racionamento, deixando quase 40 milhões de indianos pobres sem assistência.

A quarentena na Índia está prevista até a próxima terça-feira (14), mas a maioria dos ministros-chefes solicitou ao governo central que o período de restrições seja prolongado. A Índia contabiliza 6.725 casos de coronavírus e 226 mortes até o momento.

Edição: Leandro Melito


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