O Senado prevê votar nesta terça-feira (2) um projeto de lei contra fake news cujo texto ainda é desconhecido até pelos próprios senadores. O motivo é que o relator do PL 2.630, senador Ângelo Coronel (PSD-BA), só deve apresentar a proposta final horas antes da discussão, conforme decidiram líderes partidários na segunda-feira (1º).
Até o momento, de conteúdo público, só há um projeto protocolado pelo autor, senador Alessandro Vieira (Cidadania-SE). O relator, no entanto, já avisou que vai mudar as regras previstas e apresentar um texto diferente, sem explicitar quais serão as alterações. Além de relatar o PL, Coronel também é o presidente da Comissão Parlamentar Mista de Inquérito (CPMI) das fake news no Congresso.
Embora tenha sido batizado de “Lei da Liberdade, Responsabilidade e Transparência na Internet” pelo autor, a condução do processo de votação não deixa tempo hábil para debates e proposições de emendas, segundo Marina Pita, coordenadora-executiva do coletivo de comunicação Intervozes.
“Quem defende a aprovação tem falado que podem ser apresentadas emendas até duas horas antes da votação, mas a gente não sabe sobre qual texto para fazer emendas. Se o relatório for completamente diferente do projeto protocolado, as emendas não fazem sentido”, alerta ela.
Não é desse jeito que a gente vai conseguir ter um bom resultado.
Marina ainda pondera que o Congresso está fisicamente fechado em razão do coronavírus, o que cerceia o debate público. “É muito preocupante esse processo. A gente entende que é preciso, sim, se debruçar sobre o fenômeno da desinformação, achamos muito preocupante. A gente, por exemplo, vem defendendo sistematicamente que as plataformas devem ser reguladas, que é preciso garantir transparência, que é preciso garantir um devido processo na moderação de conteúdo em que o usuário possa se defender e possa apresentar seus argumentos, mas não é desse jeito que a gente vai conseguir ter um bom resultado”.
A coordenadora do Intervozes pede que a votação seja adiada para depois do controle à pandemia no país. Ela sugere que, caso o projeto seja mantido em pauta, os senadores e movimentos “preocupados com a democracia” obstruam a votação. “Tenho dificuldade de entender como é que os senadores acham que podem analisar uma proposta tão rapidamente, que pode ter um impacto, inclusive, na possibilidade deles se expressarem, deles apresentarem suas perspectivas nas redes sociais”.
A presidente do Instituto de Pesquisa em Direito e Tecnologia do Recife (IP.rec), Raquel Saraiva, lembra que o projeto foi antes sugerido para ser apresentado na Câmara, mas o Senado tomou a frente da discussão. Desde então, diz ela, houve “um atropelo sem tamanho” para que o projeto seja rapidamente aprovado.
“Tem diversos grupos, entidades de sociedade civil, coletivos, institutos de pesquisa, que não estão sendo ouvidos, ou estão sendo ouvidos, mas suas considerações não estão sendo incorporadas ao texto. Ou até estão sendo incorporadas, porque a gente não sabe qual é o texto”, afirma ela.
Raquel destaca que a maioria dos senadores não tem contato com o tema e está sujeita a aprovar uma lei sem saber quais consequências podem surgir. “Tudo bem que o relator, senador Ângelo Coronel, é o presidente da CPMI das Fake News, então ele está tendo um contato com o tema. Ele tem um acúmulo sobre o tema, mas o texto vai ser votado por um colegiado de 81 senadores. Então, é possível que a grande maioria deles não tenha qualquer tipo de acúmulo sobre o tema ou nunca tenha tido proximidade com isso, do ponto de vista técnica, a fim de votar uma lei”.
Diversos grupos, entidades de sociedade civil, coletivos, institutos de pesquisa não estão sendo ouvidos.
Liberdade de expressão em risco
Mesmo diante do mistério sobre o relatório a ser apresentado, a Coalizão de Direitos Na Rede – da qual fazem parte Intervozes e IP.rec – teme que a lei atinja a liberdade de expressão, com chances de dar poder de censura às plataformas de redes sociais.
:;Covid-19: governos do Nordeste preparam dossiê sobre fake news para denunciar à CPMI::
Um dos problemas, segundo Marina Pita, é a responsabilização das plataformas pelo conteúdo gerado por usuários. Com isso, as empresas vão ter maior poder sobre o que pode ser publicado ou não.
“Isso significa que um processo de moderação privado vai cercear, ainda mais, a liberdade de expressão. A gente tem uma expectativa de aumento de moderação se as plataformas forem responsabilizadas, inclusive com multas altas e a possibilidade de bloqueio da atuação no país. Elas vão se proteger e vão moderar conteúdo em uma escala sem precedentes em relação ao que a gente tem hoje”.
Raquel Saraiva endossa a preocupação. “As plataformas vão ter medo de seu serviço sair do ar e vão adotar, como padrão, a remoção completa de qualquer conteúdo que possa vir a responsabilizá-las. É uma infração muito grave à liberdade de expressão”, diz ela.
::Bolsonaro e seus robôs: como funciona a propagação de fake news sobre o coronavírus::
Há, ainda, definições com interpretação ampla, que podem causar insegurança aos usuários. “A gente considera problemáticas algumas definições que tem no texto, principalmente a definição de desinformação, porque é um conceito muito aberto. Dá ensejo a infrações à liberdade de expressão. Uma das expressões qualificadoras do conceito de desinformação é a informação fora de contexto, o que é extremamente subjetivo. O fora de contexto pode ser absolutamente qualquer coisa”, comenta Raquel.
Para ela, a pressa em aprovar o texto põe a liberdade na internet em risco. “Não dá para querer regular a internet do jeito que eles querem, do jeito que eles estão planejando. É preciso tempo, é preciso debate, é preciso aperfeiçoar cada vez mais o texto, para que, no fim, o usuário não sofra”.
Edição: Rodrigo Chagas