A postura adotada por Jair Bolsonaro (sem partido) durante a pandemia pode custar o apoio de parte da comunidade evangélica. Essa é a interpretação de Brian Kibuuka, pastor batista e professor de História Antiga da Universidade Estadual de Feira de Santana (Uefs). Em entrevista ao Brasil de Fato, ele prevê que o “lavajatismo”, centralizado na figura do ex-ministro Sergio Moro, será a força política mais beneficiada por esse movimento.
“Existe uma vinculação e uma aderência entre o protestantismo histórico batista e a Lava Jato”, exemplifica o pastor, que ressalta a influência da religião na atuação do procurador Deltan Dallagnol, chefe da força-tarefa da operação em Curitiba (PR), por exemplo.
No mês passado, 35 organizações evangélicas assinaram um manifesto pedindo o julgamento imediato das ações no Tribunal Superior Eleitoral (TSE) que podem levar à cassação da chapa presidencial pela divulgação de notícias falsas durante a campanha. O texto manifesta solidariedade às vítimas da covid-19 e afirma que Bolsonaro “dá provas que não está à altura do cargo que ocupa”.
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As lideranças neopentecostais mais influentes do país, por outro lado, se mantêm fiéis ao bolsonarismo. Durante a pandemia, por exemplo, elas tentaram se valer dessa relação para impedir que templos fossem fechados, apesar das recomendações da Organização Mundial da Saúde (OMS).
Além de criticar os evangélicos que deixam de defender a vida em nome de interesses financeiros, Brian Kibuuka avalia que o vídeo da reunião ministerial, divulgado em 22 de maio, pode ser mais destrutivo para Bolsonaro do que as denúncias de corrupção ou “rachadinhas”.
Neto de pastor da Igreja Evangélica Anglicana em Uganda, na África, o professor da Uefs diz que as contradições do movimento evangélico, que se radicalizaram no governo Bolsonaro, refletem as origens do protestantismo no Brasil.
Confira os melhores momentos da entrevista:
Brasil de Fato: Bolsonaro vem sendo criticado por ironizar ou fechar os olhos para as milhares de mortes por covid-19 no Brasil. Lideranças evangélicas, além de manterem o apoio ao governo, pressionam para que templos continuem abertos sem restrições durante a pandemia. Como explicar essa postura?
Brian Kibuuka: O modelo do movimento evangélico brasileiro nos últimos anos se parece muito ao das franquias. São igrejas abertas para um grande número de pessoas, que precisam de um capital muito significativo circulando para manter sua estrutura, os salários dos pastores e os aluguéis, que são muito altos.
As igrejas têm estratégias de mercado que não são confessadas no discurso público. No momento em que precisam ser fechadas [por conta das medidas de isolamento], os pastores perdem a capacidade de financiar a sua atividade religiosa e de continuar produzindo riqueza para si. Porque a visão deles, nesse aspecto mais oculto do movimento evangélico, é uma visão comercial, como se fosse uma empresa.
Isso significa que os argumentos não têm consistência religiosa, teológica. O prefeito do Rio de Janeiro [pastor Marcelo Crivella], por exemplo, foi eleito com o princípio de defender e proteger as pessoas. Esse é o princípio teológico fundamental, mas hoje ele está submetido à necessidade de sobrevivência econômica. Para isso, eles fazem qualquer negócio.
O mesmo discurso anticorrupção que faz com que evangélicos passem a apoiar o lavajatismo contra a esquerda, por exemplo, não se aplica aos políticos evangélicos que sofrem esse tipo de denúncia
Então, eles vão abraçar a ideia da negação da doença. Depois, quando a doença se agrava, vão dizer que tem políticas públicas equivocadas na gestão da saúde – e, se você provar que não tem, eles vão seguir mudando o discurso e escondendo a verdade. E a verdade é esta: os líderes religiosos estão desesperados, mas não podem romper com o bolsonarismo. Porque a esperança deles para sobreviver à crise econômica é conseguir financiamento de bancos públicos, o que é vetado até agora.
Esses líderes estão fazendo pressão, por meio dos atores políticos que eles ajudaram a eleger, para conseguir financiamento para as igrejas com taxas reduzidas, para eles sustentarem seu negócio.
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Como era a relação entre igrejas evangélicas e governo federal antes da chegada de Bolsonaro à presidência?
O movimento evangélico brasileiro surge no século 19 pelos derrotados da Guerra de Secessão, no sul dos Estados Unidos. Eles aceitam a escravidão, entendem que os Estados Unidos têm um “destino manifesto”. A teologia que eles trazem não privilegia questões humanitárias, não prioriza a eliminação das desigualdades, das injustiças sociais.
Havia um protestantismo na Europa e nos Estados Unidos mais socialmente engajado, contra as desigualdades, a favor da educação, do sufrágio universal. Mas não foi esse que veio para o Brasil.
Os evangélicos brasileiros veem ou se relacionam com o presidente como se ele fosse seu pastor
Então, os protestantes são capazes de discursar em favor da vida intrauterina [contra a legalização do aborto], mas não conseguem se colocar em defesa da vida das crianças mortas em operações da polícia.
E por que eles defendem uma bandeira, e não a outra, se eles são “pró-vida”? Porque estão acostumados, desde a origem, a serem amigos de poderes conservadores e até fundamentalistas, a não terem simpatia por bandeiras sociais mais amplas, e a se apegarem no que eu chamo de “etiquetas sociais” – em detrimento de uma ética social.
Vou usar uma metáfora bíblica: eles coam o mosquito e engolem o camelo. Eles são capazes de atribuir as grandes questões nacionais ao “comunismo” – seja lá o que isso significa –, enquanto as pequenas questões da sua ética rasteira eles colocam em grande monta, a ponto de participarem de manifestações antidemocráticas.
Brian Kibuuka é pastor batista e professor universitário / Reprodução / Facebook Bian Kibuuka
Os últimos a abandonarem os militares durante a ditadura foram os evangélicos. Eles foram com Figueiredo [último presidente militar, de 1979 a 1985] até o fim. Mesmo o Figueiredo dizendo que precisou tomar vários banhos depois de ser abraçado por negros aqui na Bahia, ainda assim eles foram capazes de apoiar o regime militar e serem contra as “Diretas Já” – claro que não todos, mas uma grande maioria.
Quando o lulismo se implantou como uma força política no Brasil, os mesmos líderes evangélicos que hoje defendem que as pessoas sejam armadas defendiam o desarmamento naquela época. Os que dizem que é preciso ser “contra a corrupção” hoje em dia, naquela época diziam que Lula e o petismo eram alinhados ao profetismo bíblico por causa de sua proposta de justiça social.
Como camaleões, eles conseguem modular seu discurso, e as pessoas não têm uma memória tão substancial que permita confrontar o discurso atual com o de outrora. Isso é a marca do movimento evangélico desde os seus primórdios.
O primeiro evangélico que tem ligação com o poder no Brasil é um missionário escocês chamado Robert Kalley, ligado a Dom Pedro II. Aí, quando ocorre o golpe militar que instaura a República, os evangélicos estão lá apoiando os militares que assumem o governo.
Quando a gente tem a ascensão do getulismo, que quebra a República Velha e propõe outra ruptura constitucional, os evangélicos também estão nessa esteira. Em 1964, mais uma vez. No lulismo, também. E, agora, com o bolsonarismo.
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Você disse que a defesa da vida é um princípio teológico fundamental. Para além dos líderes evangélicos, que têm essa preocupação financeira, como a comunidade evangélica tende a reagir ao governo Bolsonaro em meio à pandemia? Qual a margem de crítica desses fiéis em relação à palavra do pastor ou à palavra do presidente?
Vou responder com base em um conceito de Max Weber [teórico alemão, 1864-1920] que é o carismatismo. A aderência das comunidades evangélicas está relacionada ao poder carismático dos seus líderes. É isso que os coloca, muitas vezes, “acima da moral” – criando o que eu chamo de líderes “supra morais”.
Existe um regime moral que vale para cada crente. Por exemplo, uma sexualidade estrita, um ethos relacionado à vida financeira que também é restritivo, uma noção de verdade. Mas existe um campo obscuro que permite aos líderes ultrapassar essas barreiras.
A ruptura entre uma comunidade tradicional e seu líder, quando existe esse modelo de vinculação carismática, só acontece se ele ultrapassar muito a fronteira daquilo que é aceitável.
Os evangélicos brasileiros veem ou se relacionam com o presidente como se ele fosse seu pastor. Eles incluíram o presidente nesse regime supra moral. Então, ele vai dobrando a aposta, vai esticando a corda, e durante algum tempo ainda terá apoio.
Se hoje ele [Bolsonaro] tem um terço de apoio, pode ter certeza que dois terços desse apoio é de evangélicos ou de pessoas muito próximas ao ethos evangélico. Porém, se continuar rompendo nesse nível com a etiqueta que os protestantes aprenderam – da fala vulgar ser evitada, da sexualidade mais estrita –, ele vai perdendo progressivamente o apoio.
Mesmo que Bolsonaro seja visto como um líder “supra moral”, o comportamento dele durante a pandemia não seria suficiente para romper com esse vínculo carismático com as comunidades?
Ele só consegue segurar esse apoio se mantiver o apoio dos pastores mais influentes do Brasil. Para isso, ele precisa injetar dinheiro, financiamento. Precisa dar vantagens.
Então, do mesmo jeito que o Bolsonaro negocia com o “centrão”, ele está negociando com esses líderes evangélicos, está propondo atender as suas demandas. E eles não querem cargos: querem que a sua bandeira moral seja protegida e que as igrejas sobrevivam economicamente, para que eles consigam seguir lucrando.
No entanto, eu não vejo mais tanto espaço para ele continuar dobrando a aposta. Ele começou a perder apoio entre os grupos evangélicos porque ultrapassou em muito [o limite].
Muita gente pensa que a reunião ministerial que foi liberada [em vídeo] pelo ministro Celso de Mello aumentou o apoio dele entre a sua base. Porém, uma parcela de evangélicos que entende que é preciso manter certo “comportamento exemplar”, quando vê o vídeo, não consegue defender aqueles palavrões, aquelas falas exageradas.
Parte dos conservadores evangélicos já roeu a corda e não consegue mais apoiar, porque passou muito do limite que eles toleram.
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Qual força política herdaria esse apoio?
Eles migrarão para o lavajatismo. Porque o Moro é um retrato mais próximo daquilo que eles entendem que é adequado para si.
O Moro não usa palavras de baixo calão, não responde com tanta objetividade às perguntas, mas consegue manter junto à mídia a imagem de defensor da bandeira “anticorrupção”.
Deltan Dallagnol é acolhido na Igreja Batista da Lagoinha, em Belo Horizonte (MG) / Reprodução / Youtube
Essa é outra questão importante sobre os evangélicos. Muitos entendem que não é corrupção matar pessoas pobres na favela, não é corrupção desviar dinheiro de gabinete, fazer “rachadinha”. Para eles, corrupção são aquelas denúncias que a mídia chancela, dizendo que alguém teria muito dinheiro em um banco, ou que tem problemas na estatal.
Eles foram ensinados pela mídia que a ideia de corrupção requer um conjunto de características que não se verifica no governo atual. Então, as denúncias contra o Bolsonaro ocorrem em um campo que os evangélicos mais moralistas não entendem como corrupção.
Mas, diante daqueles palavrões, de cenas como aquela reunião que ultrapassa os limites da etiqueta evangélica, eles tendem a migrar para um “morismo”, esse movimento criado em torno do Moro, da Lava Jato.
Para além das consequências para o governo Bolsonaro, quais as perspectivas do movimento evangélico diante do aumento de mortes por covid-19 e do acirramento da conjuntura política?
Entre os evangélicos, existe o princípio do respeito à autoridade, ou da oração pelas autoridades. E isso se transforma, no discurso de alguns líderes evangélicos, em subserviência às autoridades.
O curioso é que essa subserviência só vale para as autoridades que os líderes evangélicos escolhem. Não devemos falar mal do Bolsonaro porque ele é uma autoridade, então devemos só orar por ele. Mas e o Doria [governador de SP], que também é uma autoridade? Aí dizem, “ah, mas ele é bandido, etc…”
A gente percebe como a junção da orientação da liderança evangélica com o princípio de respeito à autoridade produz essa força política, que hoje é o grande sustentáculo do bolsonarismo.
Muitos entendem que não é corrupção matar pessoas pobres na favela, não é corrupção desviar dinheiro de gabinete ou fazer “rachadinha”.
Na pandemia, isso é ainda mais forte. Os religiosos acreditam que Deus pode curar uma enfermidade – no caso, a covid-19. Também há quem acredite que o jejum seja eficaz para que essa praga seja afastada, ou que tudo isso seja um julgamento divino contra o Brasil.
Só que, agora, tem gente morrendo nas igrejas. E quando morre o pastor que dizia que a covid-19 era um castigo por causa do “comunismo” no Brasil, as pessoas começam a questionar essa versão.
Então, nós veremos, sim, com o avanço da covid-19, as pessoas começarem a despertar e perceber que não dá mais para subscrever o discurso desses líderes.
A minha previsão é que teremos a multiplicação de pequenas comunidades, que reunirão pessoas desencantadas com as grandes igrejas que foram parcerias da morte durante a pandemia. Essas pequenas comunidades não serão necessariamente progressistas nem inclusivas, mas serão guiadas por pessoas que vão tentar avançar a partir do discurso “apolítico”. Porque, pela postura da crítica política, não conseguem grande aderência.
É esse discurso pretensamente apolítico que conduz ao lavajatismo?
Sim, porque o lavajatismo propõe substituir a bandeira política pela bandeira da moralidade pública. E esse discurso da moralidade atrai e dialoga com os evangélicos.
Tem um tema importante e que a mídia quase não explorou. O Dallagnol [chefe da força-tarefa da Lava Jato em Curitiba] é batista. Eu também sou. E, muito tempo antes de ele começar a atuar na Lava Jato, um pastor batista, da mesma igreja do Dallagnol, fez discursos contra o PT, contra a corrupção, colocando rótulos religiosos. Esses discursos se repetem na trajetória do Dallagnol, nas denúncias que ele faz contra os agentes públicos.
Existe essa vinculação e aderência do protestantismo histórico batista com a Lava Jato. O Dallagnol foi de igreja em igreja, no Rio de Janeiro, em São Paulo, falando da experiência da Lava Jato, “contra a corrupção”.
Porém, o mesmo discurso anticorrupção que faz com que evangélicos passem a apoiar o lavajatismo contra a esquerda, por exemplo, não se aplica aos políticos evangélicos que sofrem esse tipo de denúncia.
No Rio de Janeiro, temos um senador batista chamado Arolde de Oliveira [PSD] que foi denunciado por corrupção. Como é possível seguir defendendo moralidade pública se as ações desse político batista não geram barulho, não impactam na sua imagem? O Freixo [deputado pelo PSOL/RJ], por exemplo, nunca foi denunciado por corrupção, mas os batistas seguirão ouvindo Arolde de Oliveira, e não o Freixo.
O que explica isso é a “etiqueta evangélica”, que coloca acima da corrupção os posicionamentos contra a legalização do aborto, das drogas. Isso não aparece no discurso público dos evangélicos, mas para eles isso são forças demoníacas, satânicas.
Então, para essas pessoas, Freixo seria “amigo de satanás” e Arolde seria “amigo de Deus”, porque financia a Convenção [Batista], tem uma rádio no Rio de Janeiro em que divulga os eventos, convida os pastores para debates… Por tudo isso, ele é poupado.
Esse é um fenômeno sociológico que precisa ser estudado com todo cuidado no Brasil. Infelizmente, a universidade pública é um pouco impermeável aos evangélicos. Ela entende os evangélicos, muitas vezes, de forma superficial, sem reconhecer neles uma força política que pode, por exemplo, servir de sustentação para um governo impopular.
O governo bate recordes de insatisfação, mas continua com seus 33% de apoio – e 20%, pelo menos, são evangélicos.
Eu lamento que o recorte religioso não apareça nas pesquisas de opinião. Ele mostraria que a aderência ao bolsonarismo ainda é baseada no apoio dos evangélicos. É um movimento muito conservador, que demora mais para se desapegar.
Não há uma coerência política, porque não é um movimento político, mas um movimento religioso. Por isso, opera com outras regras.
Edição: Vivian Fernandes