Índia: Por que o número de infectados não para de subir mesmo com 70 dias de lockdown

Diário Carioca

Após quase três meses de lockdown, os casos de covid-19 na Índia dispararam. Na última semana, o país saltou da sétima para a quinta colocação no ranking mundial do coronavírus, com mais de 260 mil infectados.

O isolamento horizontal é recomendado pela Organização Mundial da Saúde (OMS) como medida de contenção da doença, que já causou contaminou mais de 7 milhões de pessoas e causou 410 mil mortes em todo o mundo.

O Brasil de Fato ouviu profissionais de saúde e especialistas indianos para entender por que a paralisação das atividades não foi tão bem sucedida no país asiático quanto em outras regiões do planeta.

Diferença conceitual

A palavra lockdown, que no Brasil costuma ser traduzida como “bloqueio total”, tem significado mais amplo na língua inglesa. Na Índia, o termo foi usado pelo governo para designar diferentes etapas das medidas de isolamento implementadas até o final de maio.

A paralisação completa durou menos de quatro semanas – de 24 de março a 20 de abril. Ou seja, diferentes regiões da Índia vêm flexibilizando a quarentena há pelo menos 50 dias. De lá para cá, o número de mortes saltou de 559 para 7,3 mil.

“O lockdown foi exitoso ao adiar o pico de contaminações. Também foi bem sucedido ao transmitir certo senso de urgência às pessoas. Então, a população se deu conta da seriedade da situação”, analisa o médico Prashanth Nuggehalli Srinivas, pesquisador do Instituto de Saúde Pública (IPH, na sigla em inglês) em Bangalore, no sul da Índia.

“No entanto, estamos voltando à rotina em um momento em que o pico ainda não foi superado. Estamos próximos de retomar as atividades em muitas cidades. Então, acho que devemos nos preparar para o pior”, lamenta o especialista.

Estamos voltando à rotina em um momento em que o pico ainda não foi superado.

Demografia

Considerando que a Índia tem mais de 1,3 bilhão de habitantes, é natural que ocupe as primeiras posições no ranking mundial de infectados. Uma análise proporcional do número de casos mostra que o lockdown não foi em vão. Hoje, o país asiático tem 20 infectados para cada 100 mil habitantes, enquanto Brasil tem mais de 300.

“Em comparação com o Brasil, a Índia tem lidado melhor [com a pandemia]. Sim, aqui também temos um governo de direita, mas ele não está afirmando coisas anticientíficas, como Trump ou Bolsonaro, dizendo que o vírus não existe. O governo da Índia não fez isso porque rapidamente entendeu que a doença seria grave”, analisa Gargeya Telakapalli, médico e integrante do Movimento de Saúde Popular da Índia.

“Porém, eles apenas implementaram o lockdown. Não houve testagem, isolamento e tratamento adequado dos pacientes nesse período. O que explica isso é a fragilidade do sistema de saúde deste país. Por muito tempo, se deixou de investir em saúde pública, e hoje não temos um sistema de saúde suficientemente forte”, completa.

Sim, aqui também temos um governo de direita, mas ele não está afirmando coisas anticientíficas, como Trump ou Bolsonaro.




Hindus voltaram a fazer suas oferendas nesta segunda-feira (8); templos permaneceram fechados por mais de dois meses / Manjunath Kiran / AFP

Pobreza, fome e informalidade

Cerca de 194 milhões de pessoas passam fome ou estão subnutridas na Índia, segundo dados de 2019 da Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura (FAO). O número de pessoas com escassez aguda de água no país supera os 600 milhões. Tudo isso contribui para o insucesso das medidas de isolamento.

Mais da metade dos domicílios indianos foram considerados inadequados para o período de quarentena, por falta de água ou de espaço. Para completar, quase 90% dos trabalhadores são informais e passaram a depender de auxílios do governo durante a quarentena.

“Enquanto pesquisas mostram que os brasileiros, por exemplo, querem medidas mais rígidas de isolamento, os indianos estavam ansiosos pelo fim do lockdown para não morrerem de fome, ou de outras causas”, afirma Telakapalli. “Então, o cenário impõe esse dilema. Nossa economia vai mal, é impossível sustentar as medidas de isolamento por mais tempo, mas os casos de covid-19 continuam subindo. É uma situação muito diferente do Reino Unido ou da Espanha, em que o lockdown foi bem sucedido”.

Os especialistas também lembram que a quarentena foi decretada sem nenhum tipo de aviso ou preparação. Milhares de trabalhadores migrantes foram impedidos de voltar a suas casas, devido a paralisação das linhas de trem e ônibus. Centenas deles morreram de fome, atropelados ou em acidentes de trânsito.

Nossa economia vai mal, é impossível sustentar as medidas de isolamento por mais tempo, mas os casos de covid-19 continuam subindo.

Uma das exceções é o estado de Kerala, no sul da Índia. Governado pelo Partido Comunista Marxista da Índia (CPI-M), o estado possui o melhor Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) do país e a melhor taxa de recuperação de pacientes. Até o momento, Kerala registra 15 mortes por covid-19, de um total de 1,8 mil infectados.

Lockdown é insuficiente

Um dos motivos da ineficácia das medidas de isolamento nos demais estados é a falta de ações paralelas à quarentena. É o que explica Prashanth, ressaltando que o desbloqueio na Índia se baseia em uma necessidade econômica, e não sanitária.

“É impossível separar o econômico do social. Então, compreendo a lógica de flexibilizar o isolamento. No entanto, ao que parece, não aprimoramos nosso sistema de saúde como deveríamos. O lockdown era uma oportunidade, e ela foi perdida em alguns estados. Por exemplo, Kerala faz um trabalho notável ao aproveitar o lockdown como um tempo de preparação, para aprimorar protocolos, sistemas. Porém, vários outros estados não fizeram isso”, analisa.

Embora especialistas apontem que a Índia terminará a semana como quarto país do mundo em número de infectados, as mortes por covid-19 não vêm crescendo na mesma proporção. No ranking de óbitos, os indianos estão em 12º lugar – o que não necessariamente é um bom sinal.

Kerala faz um trabalho notável ao aproveitar o lockdown como um tempo de preparação, para aprimorar protocolos, sistemas. 

“O sistema de registro de óbitos na Índia é muito precário, se comparado a outros países. Pode haver várias mortes não reportadas. Em muitas partes da Índia rural, se a morte não ocorre dentro do hospital, ela jamais será registrada e sua causa sequer será investigada”, alerta o pesquisador do IPH.

A partir desta segunda-feira (8), shopping centers, barbearias, templos, hotéis e restaurantes, por exemplo, podem ser reabertos em quase todo o território indiano, exceto nas chamadas “zonas de contenção” – onde a proporção de casos é maior e as medidas seguem rígidas.

O cenário mais grave é no estado de Maharashtra, centro-oeste do país, onde fica a cidade de Mumbai. O estado concentra um terço dos casos de covid-19 na Índia e 40% das mortes por coronavírus.

Edição: Rodrigo Chagas


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