Para o cientista político Diego Pautasso, a pandemia já começou a transformar o panorama internacional mostrando, por exemplo, os movimentos distintos de dois grandes protagonistas: os Estados Unidos, de Donald Trump, e a China, de Xi Jinping.
Autor de “China e Rússia no Pós-Guerra Fria”, livro publicado em 2011 que trata da trajetória de russos e chineses no período pós-guerra fria, Pautasso é mestre e doutor em Ciência Política pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e também colaborador do curso de Especialização em Estratégia e Relações Internacionais Contemporâneas da UFRGS.
Nesta entrevista ao Brasil de Fato RS, ele traça um quadro do mundo em 2020, descreve os passos dos grandes atores globais nos próximos anos e lamenta o apequenamento do Brasil na cena internacional. Confira na íntegra:
Brasil de Fato RS – Como a pandemia vai influenciar as relações internacionais?
Diego Pautasso – Já influenciou. Primeiro, com a maior crise econômica desde a Grande Depressão de 1930. Segundo, porque colocou em evidência as contradições sistêmicas em múltiplos níveis, como a fragilidade dos Estados de Bem-Estar no epicentro do sistema, justamente onde a pandemia se abateu de forma mais devastadora: EUA, Grã-Bretanha, Itália e Espanha. Terceiro, colocou em caminhos ainda mais divergentes os EUA, centrando suas ações em culpabilizar os chineses pela pandemia e atacar a Organização Mundial de Saúde (OMS) e a China, que priorizou fortalecer a OMS e liderar um movimento de conformação de políticas de saúde global para combater a covid-19.
É possível dizer que a China, passada a tempestade, recuperará seu ritmo econômico, para se firmar como a primeira economia do planeta?
O epicentro geoeconômico tem se deslocado para a Ásia Oriental há décadas, liderando o ciclo produtivo da 3º Revolução Industrial. Todas as projeções até então, apesar de eivadas de incertezas, indicam que a recuperação deverá ocorrer primeiramente na China, na Índia e uma série de países da região. Certamente, o governo chinês vai mobilizar toda sua capacidade estatal para implementar políticas de ampliação da demanda e recuperação das atividades produtivas.
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Pautasso é autor de um livro sobre a trajetória de russos e chineses no período pós-guerra fria / Arquivo pessoal
Fala-se muito na segunda guerra fria, agora entre China x EUA. O que acha?
Estamos falando de contextos diferentes, mas, de todo modo, existem alguns paralelos. É inegável que a China é a principal potência desafiante às estruturas hegemônicas de poder lideradas pelos EUA, assim como a URSS foi após a Segunda Guerra Mundial. Inegavelmente, os projetos de globalização ensaiados por EUA e China são distintos e até divergentes em certos aspectos; o primeiro enfatiza o vetor neoliberal-intervencionista e o segundo, o vetor produtivo-integracionista.
Se durante a Guerra Fria havia distanciamento entre EUA e URSS, no caso das relações entre China e EUA há uma simbiose, uma interação comercial muito forte. Aliás, o ciclo de globalização iniciado nos anos 1980 foi impulsionado por uma relação estreita entre o capital financeiro estadunidense e o dinamismo econômico-produtivo chinês. Todavia, a ascensão chinesa tensiona as estruturas hegemônicas, e por isso a guerra comercial desencadeada por Washington é reveladora não apenas de uma mera disputa tarifária, mas de um embate pela liderança técnico-produtiva mundial, e, no longo prazo, pela própria liderança sistêmica.
Potência em vários campos, a China quer ser, em 2049, ano do centenário da revolução de Mao Tse Tung, aquilo que ainda não é: a primeira potência militar do mundo. Acha isso factível?
Sim, é o discurso das lideranças chinesas sobre os assim chamados “Dois Centenários”. Foi no 18º Congresso do Partido Comunista da China (PCCh), em 2012, que oficializaram essa ideia, materializada num conjunto de metas estabelecidas para o país. A celebração do primeiro centenário refere-se à fundação do PCCh, que completará 100 anos em 2021, e objetiva reconhecer a já alcançada condição de uma sociedade moderadamente próspera; o segundo, referente aos 100 anos de fundação da República Popular, em 2049, almeja o pleno alçamento da nação à condição de um país socialista civilizado, moderno, democrático e harmonioso – e, com efeito, cada vez mais assertivo na ordem mundial.
Sobre a capacidade militar, a China tem dado ênfase ao seu poder dissuasório, ao mesmo tempo que busca meios geopolíticos condizentes com seu status geoeconômico. Ou seja, mesmo com investimentos similares a outros países em termos percentuais próximos a 1,3% há décadas, o acelerado crescimento do PIB faz com que o orçamento se multiplique rapidamente. Ademais, seu progresso tecnológico se entrelaça à modernização das forças armadas, dando ao país novo status de potência.
Em que medida uma derrota de Donald Trump nas eleições deste ano poderá desacelerar o conflito com os chineses?
Difícil dizer. Existem políticas de Estado nos EUA que se mantêm apesar das mudanças de governo. Ou seja, o papel do Pentágono, do Departamento de Estado, dos órgãos de inteligência e, sobretudo, dos lobbies do complexo militar, do setor e do centro financeiro de Wall Street conformam um elemento que tensiona em prol de certa continuidade na política estadunidense.
Ademais, os partidos Democrata e Republicano, naquilo que Domenico Losurdo chamou de monopartidarismo competitivo, apresentam divergências mais pontuais e táticas do que propriamente estruturais e estratégicas. Na época do democrata Barack Obama, por exemplo, houve um recrudescimento das tensões nas relações com a Coreia do Norte, enquanto que com Trump houve tentativa de restabelecimento de diálogo. O inverso pode ser imputado às relações com o Irã, mais amistosas com Obama e deterioradas com Trump. A questão é mais sinuosa do que parece.
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Acredita na vitória de Joe Biden, possivelmente tendo como vice uma mulher negra?
Ninguém acreditava na eleição de Trump, assim como ninguém acreditava na eleição de Bolsonaro até o último momento. No contexto da pandemia, é possível que a oposição vença nos EUA, dada a inépcia do governo e a reveladora vulnerabilidade do sistema de saúde da superpotência.
Contudo, qualquer avaliação conclusiva, dada as inúmeras incertezas, corre o risco de ser invalidada. Afinal, pode-se citar como exemplo que, durante a crise financeira do subprime (2007/2008), os EUA foram o primeiro país a retomar o dinamismo da economia e, com Trump, vinha logrando praticamente garantir o pleno emprego.
Portanto, antever a política de Biden é impossível; e o fato de a vice ser negra também não diz nada, pois Barack Obama, Colin Powell e Condoleezza Rice eram negros, para ficar nas últimas personalidades. Aliás, a confusão acerca da agenda de costumes (reconhecimento), dissociada daquela em favor do desenvolvimento, soberania e redistribuição, talvez seja umas das grandes miragens de segmentos de esquerda da atualidade.
Como percebe o Brasil de Bolsonaro, que se afasta de seu grande parceiro comercial, a China, da África, do mundo árabe e de seus parceiros históricos na América do Sul, e se aproxima dos EUA, seu concorrente em muitas frentes, e de Israel?
Desde o final do governo Dilma Rousseff houve uma retração do ativismo diplomático da Era Lula-Celso Amorim. No governo Temer, diversas outras iniciativas refluem ou são interrompidas.
Entretanto, apenas com Bolsonaro linhas históricas da política externa brasileira foram finalmente descontinuadas: a defesa do multilateralismo, da solução negociada de conflitos, do não-alinhamento, da ênfase na independência e busca pelo desenvolvimento, etc. Ou seja, está se desenhando um alinhamento submisso ao centro do sistema de inéditas proporções, absolutamente nocivo para os interesses nacionais.
Emblemático disso, é a disfuncional e irresponsável condução da diplomacia com aquela que é nossa principal parceira comercial desde 2009, a China. Aliás, justamente com o principal polo geoeconômico do mundo, responsável por 80% do superávit comercial do Brasil em 2019 e, de quebra, líder na produção de Equipamentos de Proteção Individual (EPIs) em saúde no contexto da pandemia. Infelizmente, o país que recentemente detinha protagonismo e altivez em suas participações nos BRICS, nas organizações internacionais e em mecanismos de integração regional, atualmente é motivo de zombaria por suas decisões políticas e diplomáticas.
No passado, a Rota da Seda integrava a China e a Ásia à Europa. O projeto Nova Rota da Seda, do presidente Xi Jinping, vai além e pretende abarcar grande parte do planeta. A China vai investir US$1 trilhão – dez vezes mais do que custou o Plano Marshall de recuperação da Europa no pós-II Grande Guerra. Há chance da América Latina e do Brasil se beneficiarem disso?
A Nova Rota da Seda foi lançada em 2013, e depois se transformou num fórum para dar substância e consequência aos seus projetos. Hoje já envolve boa parte da Eurásia, com centenas de projetos de infraestrutura, sobretudo nas áreas de energia e transporte. Temos considerado como um projeto chinês de globalização, primeiramente voltado para o âmbito euroasiático, regional, mas com a nítida ambição de se transformar num projeto global.
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Naturalmente, a potencialidade da iniciativa chinesa está em tensionar uma ordem global ainda liderada pelos EUA. Esse é, em nosso entender, o núcleo da atual encruzilhada civilizatória, justamente num contexto de transição sistêmica prenhe de contradições. Aliás, as narrativas de que a Nova Rota da Seda representa relações imperialistas não tem substância e frequentemente são irradiadas por pesquisas financiadas no Ocidente, ligadas a interesses setoriais bastante específicos.
Reconhecer a existência de assimetrias nas relações de poder, seja entre partidos, instituições ou países, é diferente de nivelar essas assimetrias às práticas coloniais ou imperialistas, cujos conteúdos de coerção e pilhagem estão em outros patamares históricos. Mais do que isso, a política de investimentos externos voltados para a consecução de obras de infraestrutura, visando garantir o escoamento de matérias-primas e recursos naturais, representa, na verdade, uma oportunidade e potencial alavanca para a ascensão econômica de nações periféricas, caso sejam capazes de enquadrá-la num projeto mais amplo e estruturado de desenvolvimento nacional.
Fonte: BdF Rio Grande do Sul
Edição: Raquel Júnia e Marcelo Ferreira