A criança é um enigma para o adulto, assim como o adulto é um mistério para a criança

Tamyris Torres
Tamyris Torres - Tamyris Torres
Foto: Mikhail Nilov

O Dia das Crianças chegou e, se não me falha a memória, uma enxurrada de fotos de adultos enquanto crianças é postada nos respectivos perfis de redes sociais.

Eu não poderia deixar passar essa data sem falar da criança sob a ótica da Psicanálise. O que será que Freud descortinou sobre a infância, nos trazendo à tona os tabus e conflitos sociais, culturais, científicos e religiosos de toda a humanidade?

Uma coisa eu sei: Se Freud fosse mulher naquela época, certamente seria queimado como bruxa por trazer temas como inconsciente e sexualidade na infância. Mas, voltemos ao tema central…

Antes de falar da contribuição freudiana, precisamos entender alguns aspectos importantes acerca da infância e das crianças na Era Medieval, pois esse conceito mudou com o tempo e nem sempre era a mesma visão a que temos atualmente. Nessa época, não existia o sentimento da infância (alguém para se proteger, para cuidar, para educar e disciplinar): o que existia era a criança, ao se tornar mais independente da mãe, era colocada junto aos adultos para viver como um deles. A escola era uma exceção e a regra era aprender com a vida. Só me vem o termo à mente: aprendendo na escola da vida.

Somente com os educadores e moralistas do século XVII, a ideia de um outro tipo de sentimento de infância passou a fazer parte da sociedade, permitindo um certo interesse psicológico e também moral nas crianças. Sendo assim, entenderam que disciplinar, ensinar e mostrar os costumes morais das tradições poderiam ajudar à cultura de família (dado este bem cristão, diga-se de passagem). Logo, a criança passou a ser vista como símbolo de imperfeição, pureza e inocência. Assim, a necessidade de educá-la se tornou uma das primeiras preocupações dos pais, já que para manter a tradição e os bons costumes (religiosos principalmente), era preciso educar – até mesmo pela dor com castigos corporais e surras. 

Com a concepção de inocência infantil, os assuntos sexuais passaram a ser proibidos. Aqui, podemos verificar que já existia uma preocupação em separar as crianças dos adultos. Outro critério para ajudar nessa ‘separação’ era o método da humilhação. Quanto mais eu coloco determinada criança no ‘seu lugar’ de inferior, que nada sabe e que precisa de um adulto para doutriná-lo, eu a diferencio do adulto e crio um mistério sobre o que é ser adulto. O tempo também traz outras preocupações e a Ciência passa a denunciar o quanto de crianças morrem por ano devido às doenças infecciosas e também com o ‘regime escolar’ agressivo que era costume social. Assim, a criança se torna objeto de estudo em várias áreas de conhecimento, a partir do século XIX. 

Com o fim do século XIX e início do XX, Freud traz conceitos importantíssimos. A Psicanálise trata da noção do inconsciente e também da existência de uma sexualidade infantil e isso é o suficiente para abalar a sociedade da época. 

Para a Psicanálise, o ser humano é marcado pela linguagem antes mesmo de nascer. Quando uma criança vem ao mundo, biologicamente, ela já têm nome, sobrenome, familiares, uma história e bagagem de seus pais, uma casa, um quarto (ou não), marcando um lugar que é simbólico. Conceitos como o corpo, linguagem, sexualidade e inconsciente são trazidos por Freud, que mostra que as crianças são capazes de sonhar, desejar, amar, odiar, crer e se culpar, por exemplo. E se elas são marcadas antes de nascer, isso significa que os pais idealizam as suas crianças, pois qualquer relação com o outro vem com a marca do narcisismo, inerente à constituição humana. 

O que falar da amnésia infantil? Para Freud, esse período que varia até os 5, 6 anos é fruto de um recalcamento dos primeiros anos de vida que compreende informações da sexualidade infantil e se estende a quase toda infância. Obviamente, essa amnésia distancia o adulto do seu material infantil a tal ponto que a criança se torna algo que ele não pode compreender, logo precisa controlar e fazer tornar-se como ele, no futuro. 

Quando uma criança é idealizada por um adulto, quer dizer que este mesmo adulto está construindo um ideal para si. Assim nascem os ideais criados pelos adultos: o ideal de pai e mãe, de professor(a), de aluno(a), de trabalhador(a). O próprio ser humano crescido se coloca nessa posição de idealizar as suas relações. A Psicanálise nos mostra que toda relação não existe sem tropeços, erros e acertos porque somos marcados pele inconsciente freudiano e imersos na linguagem, ou seja, mediados o tempo inteiro pela linguagem. A criança aprende a falar com os adultos, são ensinadas aos costumes e culturas por adultos, ou seja, são à imagem e semelhança deles. 

A ideia de sucesso para essa criança é que uma hora esse ideal falhe, pois assim ela seria capaz de seguir seus próprios passos, sem precisar estar alienada àquele adulto que a criou. No entanto, é importante dizer que essa alienação na infância é importante para a criança se constituir. Quando esse ideal de sucesso não falha e esse descolamento nunca acontece, vemos os casos dos adultos que não conseguem viver uma vida sem que precisem do aval ou permissão dos pais. Aqueles que não saem da casa dos pais, casos de psicoses, etc.

O que Freud vem nos dizer é que a ideia de infância com uma criança calma, tranquila e dotada de pureza imaculada não existe. Isso também é fruto de uma idealização adulta de criança policiada, disciplinada, educada que diz mais do gozos, fracassos, perversões e sublimações dos adultos do que qualquer outra coisa. O adulto sempre vai se frustrar porque a sua criança não vai ser como ele deseja. Ele precisará lidar com isso. 

Isso quer dizer que temos então que ser iguais aos nossos pais, professores, tutores, líderes ou chefes só porque eles estão em um lugar de ‘mestre’, que ensina um suposto saber para quem ainda não sabe? Não necessariamente. Os neuróticos podem e devem descolar desse lugar. Isso é o que chamam de cortar o cordão umbilical. Você não precisa ser como quem te ensinou um dia. É preciso andar com as próprias pernas e tomar as decisões com a responsabilidade de alguém que cresceu e precisa descobrir qual é o seu desejo para além do desejo do Outro.

Esse artigo foi criado a partir da leitura do texto de Léia Priszkulnik “A Criança sob a ótica da Psicanálise: algumas considerações”

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Tamyris Torres
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Tamyris Torres além de Escritora, é Jornalista e Psicanalista. Autora de diversos artigos e publicações em revistas especializadas, trabalhou em algumas redações jornalísticas do país até iniciar sua jornada escrevendo as próprias histórias. O livro O Destino de Irene lança a autora nas histórias de ficção, misturando o melhor dos mundos das suas áreas de ocupação.