Por Daniel Brea, no CTXT | Tradução: Rôney Rodrigues
“O reprimido, a representação pecaminosa, é – por uma analogia mais profunda e ainda a ser esclarecida – o capital, que tributa juros até o inferno do inconsciente.”
Walter Benjamim
Numa ocasião, após uma palestra proferida em 1996, Cornelius Castoriadis lamentava que as ciências sociais continuassem funcionando “como se Freud não tivesse existido”, isto é, “como se as motivações dos seres humanos fossem trivialmente simples e ‘racionais’”. O filósofo greco-francês pensava que as descobertas do autor de O mal-estar na cultura haviam facilitado, desde o final do século XIX, uma compreensão mais complexa e justa do ser humano, que não se conduziria apenas em função de interesses ou critérios exclusivamente racionais. Este é o grande avanço do psiquiatra vienense e dos seus seguidores. No entanto, a economia, o pensamento político e a sociologia permaneceram surdos à psicanálise.
A partir daí, cabe perguntar novamente se as áreas do conhecimento referidas se aventuraram em pensar “como se Freud tivesse existido”. Não sabemos se a situação geral é melhor do que quando Castoriadis deu a sua palestra, mas no início de 2024 já vieram à luz do dia duas obras que se encarregaram disso. O primeiro foi Desejo pós-capitalista, que acolhe as aulas de Mark Fisher na Goldsmiths durante o primeiro semestre de 2016, curso suspenso devido ao suicídio do autor de Realismo Capitalista. E o segundo foi Capitalismo Libidinal, que reúne os artigos de Amador Fernández-Savater publicados nos últimos anos e relacionados a questão.
E qual é “a questão”? Em geral, desejo, libido. E, em especial, a sua situação no mundo atual, caracterizada pela captura e orientação que o capitalismo neoliberal tem operado em torno do trabalho assalariado e do consumo ansioso.
Pescador e Fernández-Savater compartilham autores, leituras e sensações, para que seus livros dialoguem com fluidez, a ponto de ser fácil perceber que são obras que se complementam. E uma vez que em Desejo pós-capitalista e o Capitalismo libidinal nos faz palpitar uma vontade encorajadora de pensar, no que se segue vamos agarrar a luva e pensar com ambos sobre as vicissitudes do desejo e da libido neoliberais.
Capitalismo libidinal
O trabalho e o consumo são dois dos elementos que mais rapidamente vêm à tona e que geram um grande problema no capitalismo de hoje. Em relação a isso, se são óbvios é porque ambos são onipresentes e, assim mesmo, se geram um problema maior é porque ambos foram erigidos nas figuras do desejo e do prazer, por isso é apropriado perguntar como isso tem sido possível.
No início do século XX, Max Weber publicou uma série de ensaios que foram publicados sob um título que o tornaria famoso: A ética protestante e o “espírito” do capitalismo. Além da tese central da obra, que explica que os principais ramos do cristianismo reformado fomentaram o espírito de riqueza entre os fiéis ao verem nele um sinal de salvação, Weber percebeu que para chegar lá o primeiro passo seria alterar as palavras. E o grande responsável foi Lutero, quando traduziu a Bíblia para o alemão e associou o substantivo Beruf (profissão, trabalho) a um chamado de Deus. Em espanhol [assim como no português] é fácil perceber o que implicou a virada luterana, pois as palavras profissão ou vocação estão igualmente repletas de conotações religiosas: a fé é professada, a vocação é atendida. Assim, hoje, quando uma pessoa afirma ser “muito profissional” ou ter uma “vocação clara”, ela não só diz de forma mais ou menos velada que está religiosamente ligada à sua profissão, mas também lhe dá um sentido religioso, positivo. Em parte porque o mundo em que vivemos recompensa esta atitude e castiga quem a contraria.
Daí até o desejar ser algo profissional ou contar com uma vocação é só um passo.
Porém, 60 anos depois, Pier Paolo Pasolini vislumbrou uma mudança que vinha ocorrendo desde o fim da guerra (na verdade, estava fermentando durante o fordismo) e que seria complementada pelo fenômeno que Weber já havia advertido. Uma “mutação antropológica”, avisava o poeta de Emília-Romanha, fez com que os seus vizinhos fossem consumidores em série, a ponto de construir uma “civilização do consumo” cujo carácter totalitário era ainda mais opressivo que o do fascismo. O que incentivou a expansão do consumo até se converter em uma civilização? Na opinião do próprio Pasolini, a resposta foi o hedonismo de massa, cujo poder extinguiu o resto dos valores presentes no passado. É “a nova religião”, sublinhou o autor de O Evangelho segundo são Mateus, ligando-se assim ao que dissemos da Ética protestante e do “espírito” do capitalismo: uma pulsão religiosa esbarra no trabalho, tal como no consumo.
Não há periferia. O trabalho e o consumo colonizaram fundamentalmente os seres humanos que quando não trabalham consomem e quando não consomem trabalham.
Contudo, o que acontece é uma situação que pode ser caracterizada da seguinte forma: se pretende continuar existindo, o capitalismo, com especial gravidade na sua versão neoliberal, exige trabalho e consumo, uma exigência que tem mais possibilidades de ser observada com a garantia de que as pessoas de quem dependem gostam de trabalhar e consumir. Assim, uma de suas grandes vitórias é ter conseguido que o dever de trabalhar e de consumir se revestisse do desejo de trabalhar e consumir.
O capitalismo libidinal se reproduz graças a cada um e cada uma, por isso somos nós que fazemos o mesmo. Como resultado, talvez não seja arriscado dizer que o capitalismo busca (e muitas vezes encontra) cúmplices.
A partir daqui surgem duas possibilidades. A primeira, mais acessível, é uma espécie de decrescimento libidinal e envolve a limitação do desejo de trabalhar e consumir; é o caminho que se rebela contra a orientação dos desejos para conduzi-los a fins mais satisfatórios. E a segunda, mais vaporosa, é uma espécie de revolução libidinal e envolve a eliminação do desejo de trabalhar e consumir; é o caminho que se rebela contra a captura dos desejos para libertá-los, se possível.
Qual opção escolher? É possível escolher?
Desejo pós-capitalista
Há mais de 50 anos, Franco Bifo Berardi dava a impressão de optar pela segunda: “Deixamos aos trabalhadores o rechaço do trabalho e a insubordinação permanente, a desordem organizada”, disse em 1970, época do autonomismo. O objetivo expresso era a abolição do trabalho, o que na prática significava quebrar um dos pilares do capitalismo que temos visto até agora.
Em relação a isso,The Big Quit, que surgiu nos Estados Unidos, mas teve réplicas em alguns outros países, provou que ele estava certo: vários milhões de pessoas deixaram seus empregos no calor da pandemia de covid-19, um fenômeno que ainda escapa de forma satisfatória a explicações e que, aliás, dá a impressão de estar esgotadando-se desde o final de 2023. Apesar de tudo, a fuga dal lavoro contribuiu para que o pensador italiano desse corpo a uma ideia que defende desde então: a da deserção.
No seu famoso Dicionário Etimológico, Joan Corominas recorda que a deserção partilha a sua raiz com o desejo, pelo que existe uma grande proximidade entre as duas vozes, já no plano linguístico. Da mesma forma que existe no político.
Ao longo dos últimos anos, Berardi não só continuou a sua convicção de que devemos desertar do trabalho, mas também que devemos fazer o mesmo com o consumo, o segundo pilar a que temos aludido. Na verdade, a sua abordagem deve-se à crítica à “ideologia hedonista” formulada por Pasolini, uma vez que o objetivo é “libertar-nos da identificação do prazer com o consumo”. Diante de uma veia consumista que considera “patogênica”, Berardi pensa que o desejo deve ser separado do consumo em prol de uma “insurreição frugal”.
Na realidade, a deserção de Bifo não se limita ao trabalho e ao consumo, mas estende-se à guerra ou à pátria, mas no que nos diz respeito, a deserção já atingiu os seus objetivos, graças à ruptura do desejo com o trabalho e o consumo.
Porém, é possível que o que aconteça seja o contrário, ou seja: que seja o trabalho e o consumo que romperam com o desejo. O autor de Almas para o trabalho explica-o com a expressão que deu título aos seus diários da pandemia: “deflação psíquica” ou “psicodeflação”, fenômeno associado à perda da capacidade sugestiva de que gozavam os dois pilares que temos visto. Em vez de produzir prazer, o trabalho e o consumo estariam produzido sofrimentos crescentes, sendo a proliferação de problemas de saúde mental prova disso.
Se assim fosse, a conclusão surpreendente seria que o capitalismo neoliberal teria abandonado (ou renunciado, se não quisermos continuar a abusar do mesmo verbo) dos principais ardis com os quais havia tentado fazer do trabalho e do consumo fora dos âmbitos sedutores para suas protagonistas: o desejo e o prazer.
Diante de um possível desejo capitalista abandonado por ambas as partes, é oportuno pensar num desejo pós-capitalista que abra mundos alternativos para uma nova libido.
E esta questão liga-se precisamente à pergunta que devemos colocar-nos antes de terminar, que é a seguinte: para onde vão os desertores?
Comunismo libidinal
A resposta mais rápida de Berardi é “as margens”, espaços que escapam à lógica que se dão os centros de uma realidade que, acredita, não admite solução.
No entanto, o pensador italiano oferece uma segunda opção, também para explorada, como ele próprio sublinhou, que se cristaliza numa velha palavra que podemos assumir, que seja de forma provisória, seguir os seus passos: comunismo.
Ora, não devemos pensar que o comunismo a que alude Berardi é um regresso a um Estado burocratizado, planeador e vigilante à União Soviética, mas sim um slogan, um significante à espera de um significado mais próspero. Porque, embora não contemple a possibilidade de uma terceira via: “Comunismo ou extinção”, o fato é que temos que pensar no que vai ser o comunismo, em parte para decidir se é de fato o conceito mais adequado.
Coincidentemente ou não, como Berardi é um autor compartilhado, Fisher e Fernández-Savater fizeram eco à mesma palavra. O primeiro o fez acrescentando um adjetivo, comunismo ácido, alertando que se tratava de uma “provocação”, de uma “promessa” e de uma “brincadeira com um propósito muito sério”, a saber: “A fusão de novos movimentos sociais com um projeto comunista”, uma ideia que não pôde ser mais especificada, ainda por ser concretizada. E a segunda afirma que o comunismo é uma “experiência do comum” que se opõe à privatização da vida alentada pela economia; sendo, portanto, uma experiência política.
Se os desertores e as desertoras lutam nas margens para torná-los mais amáveis, o próximo passo é espalhar a amabilidade nos centros, preenchendo-os com um “vínculo des-interessado, afinitário e apaixonado”, nas palavras de Fernández-Savater: amor, Eros.
Ainda assim, é possível que uma presença excessiva de eros no final tenha sido problemática. Na Grécia antiga, berço de Eros, o afeto erótico caracterizava-se por ser febril e volátil, bem como pelo desejo urgente de fusão alentado entre amantes concorrentes. Ao seu lado, porém, havia uma expressão de amor mais fleumática, que se prestava a prolongar-se no tempo e que respeitava a integridade dos seus protagonistas: era a philía, que hoje associamos ao vínculo de amizade. Não em vão, Hannah Arendt viu nela um antídoto para o espírito agonizante da vida na Grécia.
Nestas premissas, se Eros pudesse ser combinado com a philia da Grécia, a vida radicalmente nova seria não só mais desejável, mas também mais sustentável.
Talvez as alusões ao amor e às suas muitas expressões soem excessivamente sinceras, até mesmo ilusórias, mas não o seriam mais do que as alusões que Karl Marx fez nos seus Manuscritos de Economia e Filosofia, nos quais vislumbrou uma fase em que “o ser humano como ser humano”, aquele em que “pudesse intercambiar-se somente amor por amor”. Nem força de trabalho em troca de salários, nem dinheiro em troca de bens e serviços: amor por amor. O desejo e o prazer teriam sido capturados pela alteridade e orientados para ela. Comunismo libidinal.