Aimé Cesaire e o racismo na histeria contra Lula

Diário Carioca
Foto: Reprodução

“A tradição diplomática do Brasil é de resolução de problemas. O ‘incidente’ com Israel vai em direção oposta e atrapalha não só a imagem do país, mas também o andamento de assuntos de interesse da população num ano eleitoral”, assim o apresentador editorializou, de forma excepcional, o encerramento do programa Roda Viva, que recebeu, na última segunda-feira, o ministro das Relações Institucionais Alexandre Padilha.

Basicamente, o jornalista (ou sua chefia) afirmou que Lula foi irresponsável ao comparar o genocídio em curso na Faixa de Gaza ao Holocausto perpetrado pelo Terceiro Reich, nos extertores da Segunda Guerra Mundial. Afetou a tradição diplomática nacional e o potencial eleitoral do campo dito democrático nas municipais do fim do ano. A fala de fechamento do Roda Viva sumariza o que tem sido a reação mais “progressista” da mídia corporativa brasileira à forte declaração do presidente. Sobre posições abertamente genocidárias, eu me reservo o direito de nem comentar.

Por trás da preocupação mundana com os rumos da chamada normalidade democrática no Brasil, disfarça-se a pura e simples hierarquização da vida humana. Mas por ora, aos argumentos de superfície: mais do que um disparate conceitual, a fala de Lula seria um erro tático, por ocorrer em meio ao fechamento de cerco em torno do ex-presidente Jair Bolsonaro, acossado pela Justiça por sua cada vez mais deflagrada atuação em prol de um Golpe de Estado em 2022.

Para quê ressuscitar um bolsonarismo nas cordas, se a economia neoliberal capitaneada por Fernando Haddad cresceu acima do esperado? Para que alimentar o fogo de um Congresso cravejado por todos os tons de fascismo? Para que atiçar a oposição, num país de missionarismo evangélico galopante, em pleno ano eleitoral? E mais, para que fazer isso às vésperas de um ato público convocado por Bolsonaro em sua própria defesa? Se a suástica verde e amarela tomar a Avenida Paulista no domingo, a culpa não será da insistente inação de nossas classes política e midiática diante do fascismo, cujas raízes na história recente remontam à Anistia geral e irrestrita que anulou os crimes da Ditadura na reabertura política de 1985. Não, a culpa será de Lula, esse Bolsonaro de sinal invertido.

Reside por trás dessa reação hegemônica o fetiche por uma normalidade imaginária que só pode ser talhada com uma ferramenta, a moderação. Tarik Ali veria aí uma expressão de extremismo centrista, uma postura política pseudo-responsável, calcada na máxima thatcheriana de que “não há alternativa” ao neoliberalismo, caminho “natural” da “evolução humana”. Algumas pilhas de cadáveres no caminho são, literalmente, “ossos” do ofício. O que se denota no debate histriônico da imprensa vira-lata é mais do que isso, é uma brutal inversão da máxima leninista, segundo a qual devemos ser flexíveis na tática e radicalmente inflexíveis no princípio.

Lula teve uma postura de princípio: antirracista, anticolonialista, humanista. O que Israel faz em Gaza é, sim, comparável ao que a humanidade produziu de pior. É o extermínio em massa de uma população inteira, cuja imensa maioria é formada por mulheres e crianças, justamente por estar submetida a 70 anos de assassinato sistemático. Isso precisa ser freado, agora. E o premiê israelense Benjamin Netanyahu não puxará o freio. Não só por afiliação ideológica ao fascismo local, mas porque sua sobrevivência depende da aniquilação da população palestina. Seu comprometimento jurídicoeconômico e político é extenso demais para voltar atrás.

O freio terá que vir de fora. E essa deveria ser a prioridade do mundo agora, ou lidaremos com as consequências morais, políticas e humanitárias de termos assistido, inertes, a um genocídio em tempo real. O mundo não tinha imagens do Holocausto até que o Exército Vermelho liberasse os campos de extermínio do Leste Europeu. Alegar ignorância era possível até ali. Agora, não. Como não foi durante a crise migratória de 2015, como não foi – nem é – depois do escrutínio público do genocídio yanomami ou durante a política de morte aplicada pelo ex-governo na crise da COVID. Agora, todo mundo está vendo.

E se o governo israelense conseguir cumprir com a Solução Final sionista, cria-se a jurisprudência que Hitler tentou criar. Lebensraum, espaço físico para o desenvolvimento da vida ariana, era o que buscava o führer com a eliminação total do que ele chamava de bolchevismo judaico do leste europeu. Lebensraum é o que o Estado de Israel busca com a limpeza étnica de Gaza. A comparação de Lula se sustenta, conceitualmente.

Mas mais do que isso, é a única postura antirracista possível. Porque todo projeto colonial, o israelense incluso, é racista. O Holocausto, no discurso sionista, é um artifício ideológico como deixou claro o pesquisador judeu Norman Finkelstein, também persona non grata em israel. Divorciado do holocausto real, transformado numa excepcionalidade histórica imune a qualquer comparação, ele se torna uma carta branca para sua própria reencenação. Ao fazer a comparação, Lula ecoa Aimée Césaire e desconstrói com duas frases simples, o excepcionalismo que justifica o projeto colonial.

Como diria o grande teórico da negritude, “vale a pena estudar, clinicamente, em detalhes, os passos de Hitler e do hitlerismo e revelar ao burguês muito distinto, muito humanista e muito cristão do século XX que ele carrega consigo um Hitler sem saber, que Hitler vive nele, que Hitler é seu demônio, que se ele o vitupera, é por falta de lógica, no fundo. O que ele não perdoa em Hitler não é o crime em si, o crime contra o homem, não é a humilhação do homem em si, é o crime contra o homem branco, é a humilhação do homem branco, é de haver aplicado à Europa os procedimentos colonialistas que atingiam até então apenas os árabes da Argélia, os coolies da Índia e os negros da África”.

A mídia e a classe política brasileiras mostram o quão estanque no século XXI é o antigo burguês de Césaire: até eleições municipais no Brasil têm maior peso moral do que o extermínio completo e sistemático de um povo não branco

Biografia do autor: Este artigo foi produzido pela Globetrotter. Gabriel Rocha Gaspar é um ativista marxista e jornalista brasileiro, com mestrado em literatura pela Universidade Sorbonne Nouvelle – Paris 3. Durante cinco anos foi repórter da rádio pública francesa RFI, ao mesmo tempo em que trabalhou como correspondente de assuntos externos para vários meios de comunicação brasileiros. Atualmente é jornalista freelancer.

Fonte: Globetrotter

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