Artigo | Mais pobre e mais brutal: Leste Metropolitano do RJ lidera violência policial

Diário Carioca

O impacto da morte de João Pedro Mattos Pinto, de 14 anos, por um tiro nas costas enquanto brincava em casa com seus primos, durante uma ação policial no Complexo do Salgueiro, São Gonçalo, reacendeu o debate sobre a letalidade policial no Rio de Janeiro, em meio a maior crise sanitária já vivida no Brasil.

O que aconteceu com o adolescente, no dia 18 de maio de 2020, durante operação das polícias Civil e Federal, serviu de argumento para colocar em vigor a Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 635 – conhecida também como ADPF das Favelas – em 5 de junho do ano passado. Com isso, as incursões consideradas não urgentes nas favelas do Estado ficaram suspensas durante a pandemia da covid-19. 

A ADPF pretende diminuir a excessiva e crescente letalidade da atuação policial e impedir as graves violações de direitos deste tipo de ação a partir de uma série de medidas. Entre elas, o fim do uso de helicópteros, a proteção das escolas, acesso à justiça e a construção de perícias e de provas que incluam a participação da sociedade civil e de movimentos sociais no processo de investigação nos casos de homicídios e desaparecimentos forçados.



João Pedro Mattos Pinto, de 14 anos, foi morto por um tiro nas costas enquanto brincava em casa com seus primos / Arquivo pessoal

“Pensando na ADPF, o que vejo é que foi uma importante vitória das organizações e coletivos, mas na realidade a gente segue vendo estas operações acontecerem sem serem informadas, vendo as forças policiais enfrentando o STF [Supremo Tribunal Federal] e com isso temos perdido diversas vidas”, comenta a coordenadora pedagógica e articuladora do Eu, Sou Eu, Joyce Gravano.

Dados do Instituto Fogo Cruzado e do Instituto de Segurança Pública (ISP) demonstram que, nos primeiros meses da ADPF 635, houve uma redução significativa de tiroteios em operações policiais e de mortos por intervenção de agentes de segurança.

No entanto, o que os dados das mesmas instituições apontam é que o início de 2021 marca o retorno dos indicadores de violência policial aos patamares pré-ADPF das favelas, caracterizando a afronta à decisão do STF identificada pelo Grupo de Estudos dos Novos Ilegalismos da Universidade Federal Fluminense (GENI/UFF).

“Se formos analisar, houve uma diminuição das mortes provocadas pelos agentes de segurança, mas ainda temos muito o que fazer para ela ser efetiva e consiga reduzir esses números na periferia e favelas do Rio. Foi uma conquista termos voz no STF, mas além de espaço para cobrar, precisamos ter segurança sem sofrer represálias por parte do Estado”, complementa a coordenadora.

Gravano explica que São Gonçalo, por exemplo, não entra nesses mapas e nessas análises por não ser midiática. “As operações policiais e as mortes continuam seja no Complexo do Salgueiro, onde perdemos João Pedro, seja no Complexo de Miriambi ou Jardim Catarina e em diversas áreas da grande periferia de São Gonçalo”, afirma.

Panorama no Leste Fluminense

Apesar da medida do STF, desde outubro de 2020, após a posse do então governador em exercício Cláudio Castro (PSC), a determinação passou a ser gradualmente desrespeitada, até o descumprimento sistemático a partir de 2021. E foi justamente no Leste Metropolitano – onde fica o Complexo do Salgueiro, local da execução de João Pedro – onde as operações policiais retomaram suas rotinas de enfrentamento com mais força.

Dados do Instituto Fogo Cruzado mostram que entre o segundo semestre de 2020 e o primeiro de 2021, tiroteios decorrentes de ações e operações policiais duplicaram na região, bem como dobraram o número de mortos e feridos nessas situações. 

Nos primeiros seis meses deste ano, o Leste não concentrou o maior número de tiroteios do Grande Rio, ficando atrás da Zona Norte (871) e da Baixada Fluminense (630). No entanto, foi a região que registrou mais tiroteios com o envolvimento de agentes (34%), mais mortos (33%) e mais feridos (41%).

É, portanto, a região mais afetada pela violência promovida pelo próprio Estado. E é ainda a área onde os tiros mais recorrentemente deixam vítimas.

A cada dois tiroteios no Leste Metropolitano, um tem mortos e/ou feridos. A média da Região Metropolitana é de um para quatro.

Os números deixam claro que quem deveria zelar pela segurança ignora a medida. É que mesmo a ADPF 635 sendo focada na preservação de vidas, há uma política de segurança pública endossada pelos mandatos de Wilson Witzel e Cláudio Castro que fortalecem a narrativa do enfrentamento bélico ao crime ou de resposta aos ataques. 

Violência escancara a desigualdade

Esse padrão de política de segurança de confronto não acontece de forma homogênea pelo território do Grande Rio. Essas ações repressivas tendem a se concentrar em áreas de extrema vulnerabilidade social. É onde a diferença socioeconômica estrutural é diretamente atrelada a crise sanitária que assola milhares de famílias, em um contexto pandêmico e de insegurança alimentar.

No Leste Metropolitano, o Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) expõe a histórica desigualdade das suas cidades. Com exceção de Niterói e Maricá, os outros cinco dos sete municípios da região possuem valores de IDH inferiores ao índice do estado. Há poucas e insuficientes políticas públicas e serviços que promovam o bem-estar social. Mas sobram ações repressivas que atormentam a sua população.

Estes mesmos cinco municípios, concentraram 70% dos tiroteios em ações e operações policiais do Leste Metropolitano este ano. 

Sozinho, o 7º Batalhão da Polícia Militar, localizado em São Gonçalo, concentrou o maior número de tiroteios em ações policiais e de mortes nessas circunstâncias em toda a Região Metropolitana. Foram 168 ações ou operações policiais que resultaram em tiros este ano. Mais que o dobro do segundo colocado, o 12º BPM (76), que cobre 2 outros municípios do Leste Metropolitano: Maricá e Niterói. 

Mas não são só os padrões geográficos que determinam os números da violência no Estado. No ano passado, 896 pessoas morreram e 899 ficaram feridas por arma de fogo no Estado. O ISP revela que 75,4% desses homicídios são de pessoas pretas ou pardas.

São Gonçalo é o município do Leste Metropolitano que mais se destaca, com 197 óbitos no último ano e 70% dos homicídios decorrentes de intervenções policiais envolvendo pessoas negras. Apesar de mais da metade dos registros não possuírem informação sobre idade, a maioria dessas mortes ocorre entre jovens entre 18 e 29 anos.

O Mapa da Desigualdade traçado pela Casa Fluminense em 2020 aponta que o genocídio negro se perpetua nos territórios da Região Metropolitana. Um dos indicadores é o percentual de homicídios de pessoas negras em ações policiais em relação ao total para cada município, com Niterói e São Gonçalo apresentando percentuais de 88% e 71,4%, respectivamente em 2019.

Como superar a negação de direitos?

A busca das famílias destas vítimas por justiça e apoio psicológico se torna uma via crucis. Para elas há uma dupla perversidade: a vida é negada e os direitos também. Como no caso de João Pedro que teve o corpo sequestrado pelas forças policiais, obrigando seus parentes a peregrinar por hospitais e delegacias durante a pandemia para obter informações do que havia ocorrido.

O que se questiona diante dessas histórias é se esse tipo de descaso com os familiares de João aconteceria fora da favela, revelando também que não há políticas públicas para desaparecimentos. A falta de uma perícia independente também faz com que a cidadania dentro das favelas seja nula. Muitas famílias sequer têm o direito de elucidação dos crimes ocorridos lá. 

Nestas regiões, fica evidente a ausência de acolhimento e reparação com o aparato de uma política pública estruturada e eficiente.

Quem faz este trabalho atualmente é uma rede da sociedade civil composta por equipes pequenas formadas pela Comissão de Direitos Humanos da Alerj, Ouvidoria da Defensoria Pública do RJ, coletivos formados por moradores de favelas e mães que perderam seus filhos e ajudam as outras na busca por justiça. 

Na Agenda Rio 2030, o eixo 10, que trata da Segurança Pública, a Casa Fluminense aponta 10 propostas necessárias para as questões apresentadas como desafios para a Região Metropolitana. Neste artigo destacam-se três: a primeira é a implantação de políticas de reparação econômica, psicossocial e de direito à memória, assegurando acesso à justiça para mães e familiares vítimas de violência do Estado, como elemento essencial no combate ao racismo estrutural.

Nas outras duas propostas da Casa Fluminense, selecionadas para este debate estão: a criação de programa de redução de mortes violentas e a determinação de metas e ações específicas para diminuir a letalidade de violência policial. É importante destacar que em um país onde a desigualdade é uma variável comum em todos os estados é posta uma correlação espúria entre pobreza, criminalidade e a cor/ raça das vítimas.

A solução para reduzir mortes violentas e a letalidade policial passa por promover ações estruturais de enfrentamento à escassez e a provisão de bens e serviços desmercantilizados. Além de um efetivo estado de bem-estar social que preza pela vida, segurança, direitos humanos e constitucionais da população.

*O Fogo Cruzado é uma plataforma digital colaborativa com o objetivo de registrar a incidência de tiroteios e a prevalência de violência armada no país.
**A Casa Fluminense é uma ONG criada para fomentar ações compartilhadas voltadas à promoção de igualdade, ao aprofundamento democrático e ao desenvolvimento sustentável no Rio.

**Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.

Fonte: BdF Rio de Janeiro

Edição: Mariana Pitasse


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