Em 22 de dezembro de 1988, o líder seringueiro e sindicalista Chico Mendes era assassinado na porta de sua casa, em Xapuri, no Acre. Sua morte havia sido encomendada pelo fazendeiro local Darly Alves da Silva a seu filho, Darci, que executou uma sentença já há muito anunciada.
A motivação do crime era a atuação pública do líder seringueiro, já que ele lutava não só pelos direitos dos extrativistas como também se tornou um dos principais articuladores da união dos chamados povos da floresta em torno da preservação ambiental, contra o desmatamento predatório da região amazônica. Junto com outros tantos que passaram a se organizar coletivamente nos anos 1980, havia se tornado um grande obstáculo para a sanha da especulação em torno da propriedade da terra, que crescia na medida em que a produção de borracha era substituída como atividade econômica pela pecuária, movimento que ocorria desde a década anterior.
Chico não foi o único. Antes e depois dele muitos foram vítimas pela mesma razão, como se viu nos massacres de Eldorado dos Carajás e de Corumbiara, na década de 1990, e na execução da missionária estadunidense Dorothy Stang, em 2005. No primeiro semestre de 2023, a Comissão Pastoral da Terra (CPT) registrou 973 casos de conflitos no campo e a maior parte dos casos (791) se relaciona a disputas pela propriedade da terra.
O tema dos conflitos fundiários, que está longe de se resumir à zona rural, volta à tona após a Polícia Federal identificar os suspeitos de terem planejado o assassinato da vereadora Marielle Franco. Os irmãos Domingos e Chiquinho Brazão e o delegado Rivaldo Barbosa foram presos neste domingo (24) e o relatório da PF indicava “diversos indícios do envolvimento dos Brazão, em especial Domingos, em atividades criminosas como milícias e grilagem de terras. Ficou delineada divergência no campo politico em regularização fundiária e direito à moradia”.
A motivação do crime que vitimou Marielle e Anderson Gomes teria sido a atuação da parlamentar na votação do projeto de lei 174/2016, na Câmara Municipal do Rio de Janeiro, sobre a regularização fundiária de um condomínio na zona oeste da cidade.
Parecer da Procuradoria-Geral da República detalha que a atuação parlamentar de Marielle teria passado a prejudicar a exploração de áreas de milícias por parte dos Brazão. “A vereadora não escondia o seu entendimento de que as iniciativas de regularização fundiária pela caracterização de Áreas de Especial Interesse Social (AEIS) seriam adequadas para atender aos interesses dos segmentos sociais que mais sofrem com o déficit habitacional existente no Rio de Janeiro. No entanto, tais instrumentos teriam sido empregados de forma distorcida pelos irmãos Brazão, apenas para viabilizar a exploração econômica de espaços territoriais que, não raro, eram dominados por milicianos”, diz a PGR.
Além de disputas que não são caracterizadas como tal à primeira vista e que se desenrolam desde o âmbito político até o clandestino, há aquelas que são evidentes. O relatório “Panorama dos Conflitos Fundiários Urbanos no Brasil 2019-2020”, atesta que, no período analisado, o Rio de Janeiro era o estado com maior número de conflitos fundiários urbanos no Brasil, com 164 dos 647 casos registrados no país.
Urbanismo miliciano
Em seu perfil no Twitter, o ministro dos Direitos Humanos Silvio Almeida chamou a atenção para outra das conclusões do relatório final da PF apontando que “a atuação de Marielle consistia em ações conjuntas com entidades e movimentos sociais, de modo a conscientizá-los acerca de seus direitos e da necessidade de se organizarem para terem seus pleitos atendidos. Para tal, seu mandato contava com a parceria do Núcleo de Terras e Habitação da Defensoria Pública – NUTH nas ações de apoio à população sobre a defesa do direito à moradia”.
Almeida lembrou que “mais de 80% dos defensores de direitos humanos inseridos nos programas de proteção estão ligados a questões fundiárias, territoriais e ambientais”. “O Estado brasileiro precisa retomar o controle dos territórios que hoje estão nas mãos do crime organizado. Por isso, políticas de reforma urbana, reforma agrária, demarcação de terras indígenas e regularização de terras quilombolas conduzidas de modo firme pelo Estado e acompanhadas, simultaneamente, da defesa de direitos humanos e da promoção da cidadania são parte fundamental de qualquer política de segurança pública”, pontua. “É só assim que se pode enfrentar de fato milicianos, grileiros, faccionados, garimpeiros ilegais e toda gama de criminosos que querem destruir o nosso país.”
Didaticamente, o ministro faz a relação entre a questão fundiária e a violência no Brasil. A concentração histórica de terras tanto no campo quanto na cidade produzem desigualdades e se tornam ativos nas mãos de organizações criminosas por meio das estreitas conexões que estabelecem com os poderes político e econômico.
Um levantamento de 2021 produzido pelo Grupo de Estudos dos Novos Ilegalismos (GENI/UFF) e Observatório das Metrópoles (IPPUR/UFRJ) mostrava como os ganhos com o mercado imobiliário já eram apontados ali como a principal fonte de renda das milícias fluminenses. “Em linhas gerais, o urbanismo miliciano se vale da conivência das prefeituras, do suborno, cooptação ou ameaças de uso de violência de fiscais, da inserção de milicianos nas casas legislativas e em cargos de confiança do Poder Executivo, além do suporte, em diferentes níveis, das polícias civil e militar”, apontam os pesquisadores.
Para ilustrar a força que os grupos milicianos possuem no cenário político, em especial na Câmara Municipal carioca, o estudo apontava àquela altura justamente um projeto de autoria de Chiquinho Brazão e Willian Coelho, a Lei Complementar 188 de 12 de junho de 2018, que previa a regulação parcial do solo com imediata legalização nos casos em que existissem edificações já ocupadas. “Tal projeto de lei foi vetado pelo prefeito e teve o veto derrubado no plenário da Câmara, sendo necessário o Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro (TJRJ) declarar a inconstitucionalidade da lei. Muitos vereadores também se apropriam do instrumento das Áreas de Especial Interesse Social (AEIS), deturpando o seu sentido, visando promover a regularização fundiária e a legalização dos imóveis ocupados e construídos de forma irregular pelas milícias”, descreve a pesquisa.
Além de estabelecer tentáculos na administração municipal em relação à iniciativas legislativas de legalização e políticas de licenciamento e construção imobiliária, as milícias contam com a inação das forças policiais. “Ao cruzar a base de operações policiais do GENI/UFF com o Mapa dos Grupos Armados, foi possível constatar que, embora as milícias controlem mais territórios no município do Rio de Janeiro do que a soma de todos os comandos do tráfico de drogas, são poucas as operações policiais realizadas em áreas de milícia. Utilizando as operações policiais como um indicador de favorecimento político-coercitivo, identificamos as milícias como grupos com vantagem política e o Comando Vermelho como o principal grupo em desvantagem política.”
Memória e luta
Além de terem a questão fundiária como parte do pano de fundo de seus assassinatos, Chico Mendes e Marielle Franco guardam como semelhança entre si o fato de suas mortes terem alcançado uma repercussão muito maior do que imaginavam seus algozes. E isto se deveu por conta das mobilizações das famílias, amigos e inúmeras pessoas que estiveram ao lado deles em suas jornadas, além de muitas que se somaram a seus ideais e ajudaram a transformar o luto em luta.
Depois da morte de Chico, foi viabilizada a principal bandeira dos seringueiros, a criação das reservas extrativistas (Resex), que assegurou a trabalhadores o exercício de sua tradicional atividade econômica. Embora hoje haja problemas em suas áreas, como em praticamente toda a Amazônia, o fato é que sua implementação fez com que a floresta fosse desmatada em um ritmo muito menos intenso do que nas regiões não protegidas.
Seu legado e sua inspiração permanecem vivos, como continuarão também os de Marielle. E o encaminhamento da elucidação de sua morte brutal traz à luz um dos problemas estruturais do país, gerador de desigualdades, relações impróprias entre o público e o privado e fator que alimenta a violência e a exclusão. Buscar a mudança desse cenário é uma forma de honrar a memória e a luta de Marielle, projetando um futuro em que pessoas não sejam assassinadas por aquilo que defendem.