Tradicional desenho da Disney produziu um filme com a sua personagem principal preta é um avanço para o show biz. Não se criou uma princesa nova e preta, houve uma releitura do clássico A Pequena Sereia, em que a ruiva e branca donzela, agora é preta e ruiva donzela. E por que será que isso mexe no racismo estrutural social?
Eu gostaria muito de fazer uma ressalva: as feições da jovem e a magreza dela poderiam ter sido substituídas também, pois o fato dos lábios, olhos e nariz terem traços menos africanos, a faz chegar um pouco mais perto dos brancos e isso é uma crítica, sim, ao filme. Mas se a cor da pele já estremeceu as colunas brancas de diversos países, imagina pensar na Ariel preta, gorda, com nariz achatado e trans. Veja o que temos de mudança à aparência de Cleópatra, na História, até que ela se torne branca, olhos azuis, com channel liso e traços nada egípcios.
Quando eu vi a reação de crianças pretas ao ver a princesa Ariel também preta, me fez pensar que acertaram ao produzir esse filme. Para além do imaginário sobre o feminino e princesas da Disney que me convoca à crítica social feminista, me ponho a pensar que essas crianças, ao se verem representadas, começam a entender que elas podem ser o que quiserem, o que desejarem. Estamos começando a romper uma raiz profunda que o colonialismo enterrou com força no preto. Isso não quer dizer que acabou por aí, mas que é um avanço substancial, considero ser. Principalmente porque estamos falando da infância.
O homem preto e a mulher preta, em sua esmagadora maioria, desejam se apropriar de uma linguagem branca e que, ao embranquecer-se, deixam de ser pretos e assim ascendem na sociedade. Entendem o quanto que isso é enraizado por colonizadores brancos em países como o nosso Brasil? Por que o homem preto e a mulher preta precisam desses recursos para deixarem de estar numa posição de objeto para serem sujeitos?
O preto foi retirado da sua cultura, do seu país e de suas vidas para serem escravizados em outros países, obrigados a aprenderem outras línguas e culturas para, minimamente, existir. Porque o homem existe através de sua fala. Pois, quando se é mudo, não consegue se comunicar, falar, escrever, então você não é ninguém. A linguagem é um fator fundamental para a existência de um sujeito. Do preto, foi retirado tudo. Então para ‘ser’, ele precisou aprender a linguagem do Outro.
A quanto custo retiram-se séculos de escravidão e servidão da mente de homens e mulheres pretos que vivem na atualidade e descendem de escravos? Crianças sentindo-se representadas por uma princesa preta é um avanço digno. Só não se deve parar por aí.
É Frantz Fanon que vai nos dizer, em seu livro “Pele negra, máscaras brancas” que os pretos querem, custe a que custar, demonstrar aos brancos a riqueza do seu pensamento, que deve ser respeitado (e deve mesmo, tá? Mas, a questão é: por que preciso comprovar que sou tão bom quanto?). “O negro quer ser branco. O branco incita-se a assumir a condição de ser humano. […] O branco está fechado na sua brancura. O negro na sua negrura” e o autor continua…
“Há pouco usamos o termo narcisismo. Na verdade, pensamos que só uma interpretação psicanalítica do problema negro pode revelar as anomalias afetivas responsáveis pela estrutura dos complexos. Trabalhamos para a dissolução total desse universo mórbido. Estimamos que o indivíduo deve tender ao universalismo inerente à condição humana. […] A infelicidade do homem, já dizia Nietzche, é ter sido criança. […] O destino do neurótico está nas suas próprias mãos. […] Por mais dolorosa que possa ser esta constatação, somos obrigados a fazê-la: para o negro, há apenas um destino. E ele é branco. Antes de abrir o dossiê, queremos dizer certas coisas. A análise que empreendemos é psicológica. No entanto, permanece evidente que a verdadeira desalienação do negro implica uma súbita tomada de consciência das realidades econômicas e sociais. Só há complexo de inferioridade após um duplo processo: 1) inicialmente econômico; 2) em seguida pela interiorização, ou melhor, pela epidermização dessa inferioridade.”
O preto nasce acreditando ser inferior ao branco. E para ser superior/igual, ele precisa então desse embranquecimento. É pela sociedade que o homem existe, então como se muda esse raciocínio que vem desde a infância? Sacudindo essas raízes colonizadoras até elas virarem pós.
De que forma? Não sei. Toda tentativa que pense sobre isso é válido. Se uma princesa preta serviu para as crianças pretas se identificarem enquanto seres sociais, abençoada seja Ariel preta. Porque temos a chance de crianças pretas não precisarem comprovar que são melhores que os brancos, quando crescerem e deixar séculos de sofrimento menos doloroso. Elas apenas são, assim como o restante da humanidade branca é. Somos todos iguais.
Enquanto um quiser se sobrepor ao outro, temos guerras, incompreensões, complexos de inferioridade mascarados de ascensão social branca.
Na hora em que todos se virem e se posicionarem como iguais e universais enquanto à condição humana que somos viveremos em paz.
É bem por aí.
Façamos análise. Porque foi com análise que me descobri mulher preta que sou, atravessada por familiares que me diziam o quanto meu cabelo era duro e minha pele era mais ‘morena’ sem pensarem na dor e no sofrimento que isso me causou, até outro dia inconsciente