A impunidade vem funcionando como um dos maiores combustíveis a alimentar a ilegalidade e a violência do Estado brasileiro ao longo desses dois séculos de existência. Ela não existe por acaso, emergindo sob formas específicas e com objetivos bastante coerentes.
No caso da chacina em Vigário Geral – prestes a completar 30 anos neste 2023 –, dos 33 indiciados no processo, 21 foram absolvidos e reintegrados à força policial. Mas o sujeito que rouba um quilo de carne vai preso sem dó. Passa anos na cadeia, se não der a sorte de um bom advogado da defensoria pública se interessar pelo seu caso. O perfil de encarcerados no Brasil demonstra com bastante clareza que só pobre vai pro xilindró. Raramente enviamos para nossas prisões pessoas com alto poder aquisitivo ou capital político.
A impunidade se tornou um dispositivo eficiente que mantém abertas as possibilidades de escolha de um Estado muito pouco preocupado com o bem-estar dos cidadãos comuns. Não é à toa que no Brasil, ao contrário de outros países que passaram por ditaduras, especialmente as ditaduras militares da América Latina das décadas de 1960 e 1970, a anistia que foi concedida àqueles que a combateram de armas na mão teve que ser aplicada também aos agentes do Estado que cometeram crimes contra a humanidade, como torturas e execuções sumárias, práticas proscritas, inclusive, por tratados internacionais dos quais o Brasil é signatário.
Quando o Estado não pune um dos seus agentes por práticas ilegais, e, nesse caso, que violam direitos humanos, a mensagem é clara: não tem problema arrancar unha de detento ou esfregar a cara do pivete no asfalto a uma temperatura de 55 °C. Faz parte do jogo e nossas leis não precisam ser aplicadas para todo mundo.
Um sem-número de cidadãos do bem partilha dessa visão de mundo, e essa mensagem recebe apoio incondicional daqueles que se acham a salvo. Mas a verdade é que, se os agentes do Estado agem contra a ordem estabelecida pelo próprio, sem medo de represálias, torna-se difícil controlar o grau de violência utilizado, e mesmo seus alvos. Apesar de a violência policial ter alvo certo (a população preta e pobre), o descalabro da nossa impunidade atualmente permite que fiscais do Ministério do Trabalho que denunciam trabalho escravo, juízas e vereadoras que investigam milícias, jornalistas estrangeiros e servidores públicos que denunciam desmandos e assassinatos na floresta sejam assassinados por pessoas direta ou indiretamente ligadas às forças de segurança (públicas ou privadas), e a serviço de sabe-se-lá-o-quê. Tais soldados algumas vezes pagam a conta dos seus mandantes, demasiado no topo da hierarquia para sofrerem sequer arranhões. Mas o estrago já está feito.
Não dá para abrir as portas do inferno e escolher quais demônios vão sair pra passear.
*Viviane Gouvêa é cientista social e mestre em Ciência Política pela Universidade Federal do Rio de Janeiro. É também autora do livro Extermínio – Duzentos anos de um Estado Genocida, em que explicita momentos de violência por parte do Estado no regime democrático brasileiro.