Feriado ou não, o dia da Consciência Negra oferece a possibilidade de lembrarmos a história de Zumbi dos Palmares, refletirmos sobre (e apoiarmos!) a secular luta negra por dignidade e direitos e sempre, sempre celebrarmos as contribuições indeléveis das gentes boas. Como não poderia deixar de ser, durante este mês de novembro, destacarei discos, livros e filmes de autoria ou protagonizados por artistas negros. E, para começar, o álbum póstumo da mulher da inconfundível voz do milênio, da batalhadora vinda do Planeta Fome, da mulher do fim do mundo, Elza Soares.
Elza Soares, batizada Elza Gomes da Conceição, nasceu no Rio de Janeiro. Apesar das controvérsias envolvendo sua data e ano de nascimento, ninguém questiona a vida difícil que levou sendo mãe ainda na adolescência, sofrendo com a doença dos filhos e a falta de dinheiro, cantando brilhantemente para amenizar a situação. Cantou a luta contra o racismo e contra a desigualdade. Cantou samba e cantou o amor. Fez parcerias com o que há de melhor na música brasileira.
Cantando, lutando e inovando. Foi assim que encantou Ary Barroso, foi assim que viveu e sobreviveu a relacionamentos abusivos, foi assim que conheceu a fama e o ostracismo e foi assim que foi alçada ao reconhecimento novamente (e definitivo) quando a BBC criou o projeto The Millennium Concerts, em 1999, para a virada do milênio, e Elza foi convidada a cantar, recebendo o título de Cantora Brasileira do Milênio.
A nova fase da carreira de Elza Soares, deflagrada por A mulher do fim do mundo (2015), é uma amostra da potência e da singularidade da cantora. Aos 85 anos, em uma idade em que vários grandes já não criam ou já se aposentaram, Elza ainda deu a letra sobre o que foi e o que seria sua vida até o último suspiro no verso: “eu quero cantar/ me deixem cantar até o fim”. O pedido foi prontamente atendido e nem uma pandemia que virou o mundo de cabeça para baixo (de novo) impediu que tivéssemos novos trabalhos seus. À Mulher do fim do mundo (2015) seguiu-se Deus é mulher (2018), Planeta Fome (2019) e No tempo da intolerância (2023), lançado postumamente, mas terminado alguns dias antes de seu falecimento em 2022, realizando literalmente seu desejo.
Alguns tratam “Nos tempos da intolerância” como um testamento de Elza, se for verdade, é provavelmente o testamento mais bonito já criado. Sem exagero, explico. Enquanto um testamento é restrito à visão de uma pessoa (seja o morto, seja o inventariante) sobre o espólio que deixará, com as composições de outras cantoras, podemos ter uma dimensão da capilaridade da influência da artista, o modo como toca diferentes gerações. E fica ainda mais interessante, mais complexo quando sabemos que neste álbum há composições antigas e inéditas da cantora que estavam registradas em um caderninho recém-aparecido. Com Pitty, Rita Lee e algumas várias encarnações da própria Elza Soares, por mais que críticos apontem a fragilidade técnica e musical, temos um álbum que precisa ser ouvido e, cá entre nós, sem esforço algum, é uma delícia.
Neste contexto da Consciência Negra, a HBO Max incluiu o último show de Elza Soares no catálogo. Para quem teve oportunidade de presenciar essa entidade ao vivo e para quem não pode, vale a pena procurar: Elza ao vivo no Municipal.
OUTROS LANÇAMENTOS IMPERDÍVEIS DE 2023:
AFRODITH – IZA
Demonstrando toda sua potência feminina, Iza abre seu arsenal contra relacionamentos ruins exaltando a si própria e sem deixar de declarar sua capacidade igualmente potente de amar.
IBORU – Marcelo D2
É tão consistente que qualquer desavisado que vier a conhecer o D2 só agora vai acreditar que ele sempre foi do samba.
Maria da Canção – Mariene de Castro
Brilhante parceria com Roberto Mendes, Mariene canta amores humanos e divinos.
Negra ópera – Martinho da Vila
Em seu perfil no twitter, o sambista, pesquisador e professor Luiz Antônio Simas foi enfático ao comentar: é um marco. Da capa à última faixa, é tudo uma obra de arte.