No dia 9 de fevereiro deste ano, cerca de 100 homens armados se dirigiram a Dembo, em Burkina Faso, em cima de motocicletas e picapes. Eles abriram fogo contra uma milícia chamada Voluntários para a Defesa da Pátria (VDP, na sigla em inglês), que atua ao lado das Forças Armadas burquinesas na proteção de áreas no noroeste do país, nas proximidades de sua fronteira com o Mali. Esses homens mataram sete membros da VDP. Três dias depois, no 12 de fevereiro, do outro lado de Burkina Faso, próximo à fronteira com Gana e Togo, homens armados entraram no departamento de Yargatenga e mataram doze pessoas, incluindo dois combatentes da VDP. Enquanto isso, em outro incidente, ocorrido ao longo da madrugada do dia 9 de fevereiro, na fronteira com o Mali, no norte de Burkina Faso, homens em motocicletas chegaram no vilarejo de Sanakadougou e mataram outras doze pessoas, queimando casas e saqueando “os poucos bens e gado que os aldeões tinham”, como relatou um sobrevivente à AFP. Esses incidentes não são isolados. Eles se tornaram comuns em Burkina Faso, onde cerca de 40% do território é atualmente controlado por uma miríade de grupos armados que, a partir de 2012, começaram a ter a região do Sahel como alvo.
O capitão Ibrahim Traoré, que lidera o governo burquinês, chegou ao poder por meio de um golpe de Estado em setembro de 2022. Ele derrubou o tenente-coronel Paul-Henri Sandaogo Damiba, que também havia chegado ao poder por meio de um golpe, em janeiro de 2022. Nenhum desses golpes foi uma surpresa. Ambos ocorreram após os dois golpes no vizinho Mali (em 2020 e 2021), quando os militares tomaram o poder em um clima de frustração com as incapacidade do governo civil de resolver o problema da violência armada. As mesmas dinâmicas que levaram o presidente interino do Mali, coronel Assimi Goïta, ao poder, também levaram aos golpes sucessivos de Damiba e Traoré. Tem havido um aumento na pressão sobre os estabelecimentos militares no Mali e em Burkina Faso, controlados por homens na faixa dos 30 e 40 anos, para que acabem com a violência armada que, há 10 anos, assola a região. Parte da motivação para esses golpes foi o desejo de eliminar a presença do exército francês, que interveio na região do Sahel em 2013 para acabar com a violência, mas que – segundo a opinião geral – teve uma participação ativa em aumentá-la ainda mais. Em maio de 2022, Goïta ordenou que os franceses se retirassem do Mali, medida que Traoré repetiu em janeiro de 2023 em Burkina Faso.
Homens armados
Quando a guerra civil na Argélia (1991-2002) terminou, membros do Grupo Islâmico Armado da Argélia (GIA) fugiram rumo ao sul e estabeleceram bases no Mali, Níger e no sul da Líbia. As tentativas do GIA de retomar a guerra falharam, uma vez que a população argelina estava exausta após uma guerra civil de uma década de duração. Em 2007, alguns elementos radicalizados do GIA formaram a Al-Qaeda no Magrebe Islâmico (AQIM) que – como eu vi em primeira mão no norte do Sahel – se tornou uma parte integral das redes de contrabando ao longo do Saara. Os membros da AQIM começaram a trabalhar com um grupo chamado Movimento pela a Unidade e a Jihad na África Ocidental (MOJWA), liderado por Hamada Ould Mohamed El Khairy. O cenário mudou completamente para esses grupos com a guerra da Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN) contra a Líbia em 2011, que destruiu o estado líbio e deu rédea solta a grupos alinhados à Al-Qaeda na região (muitos deles agora estão sendo armados por aliados árabes da OTAN no Golfo). Em 2012, a AQIM ofereceu apoio a muitos dos árabes que foram trazidos para a Líbia durante a guerra, bem como a grupos tuaregues do norte do Sahel que vinham perseguindo seus próprios objetivos territoriais contra o governo do Mali.
A França, que liderou a guerra da OTAN contra a Líbia, interveio militarmente no Mali para bloquear o rápido movimento dessas forças jihadistas para o sul, em direção a Bamako, capital do Mali. A Operação Serval, nome da primeira missão francesa, empurrou essas forças para fora das principais cidades do centro de Mali. O então presidente francês François Hollande visitou Bamako para celebrar essas vitórias em 2013, mas disse que “a luta não acabou”. Assim, a França iniciou a Operação Barkhane, que se expandiu ao longo da região do Sahel e passou a operar junto à maciça presença militar estadunidense na região (que inclui uma das maiores bases militares do mundo, em Agadez, no Níger, não muito longe da guarnição da França na mina de urânio em Arlit, também no Níger). A incapacidade da França de deter a investida desses grupos armados no coração do Sahel levou, em grande parte, ao aumento do sentimento anti-francês na região.
Enraizado no campo
Em março de 2017, muitos desses grupos islâmicos armados afiliados à Al-Qaeda formaram o Grupo de Apoio ao Islã e Muçulmanos (JNIM), cujo líder, Iyad Ag Ghali, havia participado da luta tuaregue contra o estado malinês (em 1988, ele fundou o Movimento Popular de Libertação de Azauade). O JNIM se estabeleceu entre as lutas locais da região, se aproveitando da sensibilidade separatista do povo tuaregue e dos enfrentamentos dos fulani com os bambara do centro do país. Um ano depois da fundação do JNIM, um de seus emires, Yahya Abu al-Hammam, divulgou uma mensagem em vídeo dizendo que a retirada da França para as cidades deixou o campo nas mãos do JNIM e suas forças aliadas, que vencerão “com paciência”.
Ao se enraizarem nas redes de contrabando e nos conflitos locais por terra e recursos, os diversos grupos armados afiliados à Al-Qaeda se tornaram um alvo difícil. Os novos governos no Mali e em Burkina Faso acusam os franceses tanto de terem levado estas guerras da Líbia até seus territórios, como de exacerbá-las ao fazer acordos com grupos armados para evitar ataques contra bases militares francesas. Ao invés de acabar com a insurgência, a guerra francesa na região deu lugar à criação da província do Sahel do Estado Islâmico, em março de 2022, com a extensão das operações do grupo nas províncias burquinesas de Oudalan e Seno, nas regiões mainenses de Gao e Ménaka, e nas zonas nigerianas de Tahoua e Tillaberi. Agora, a França parte, deixando para trás governos militares mal equipados para lidar com o que parece ser uma guerra sem fim.
Rússia
Em dezembro de 2022, o primeiro-ministro de Burkina Faso, Apollinaire Kyélem de Tambèla, visitou Moscou, aparentemente em busca de assistência da Rússia na guerra contra a insurgência da Al-Qaeda. Durante sua visita, ele disse à RT que havia visitado a União Soviética em 1988, e que lamentava que as relações russo-burquinesas tenham se enfraquecido. É provável que mais apoio russo chegará a esses países, provocando uma reação do Ocidente, embora seja improvável que esse apoio do Kremlin consiga ajudar o Sahel a superar o arraigado conjunto de conflitos que perturbam a região, desencadeados sob a supervisão colonial da França.
Biografia do autor: Este artigo foi produzido para a Globetrotter e traduzido por Pedro Marin para a Revista Opera. Vijay Prashad é um historiador, editor e jornalista indiano. É membro da redação e correspondente-chefe da Globetrotter. É editor-chefe da LeftWord Books e diretor do Instituto Tricontinental de Investigação Social. Também é membro sênior não-residente do Instituto Chongyang de Estudos Financeiros da Universidade Renmin da China. É autor de mais de 20 livros, entre eles The Darker Nations e The Poorer Nations. Seus últimos livros são Struggle Makes Us Human: Learning from Movements for Socialism e The Withdrawal: Iraq, Libya, Afghanistan, and the Fragility of U.S. Power (com Noam Chomsky).
Fonte: Globetrotter