Em maio, comemoramos o Dia Mundial da Liberdade de Imprensa como um lembrete de que o papel das organizações de notícias é falar a verdade perante o poder. Não é fabricar consentimento – para usar a famosa expressão de Chomsky – a favor do governo e das classes dominantes.
É uma ocasião para nos lembrarmos de três pessoas que exemplificam a necessidade de falar a verdade: Daniel Ellsberg, famoso pelos Pentagon Papers, Julian Assange, do WikiLeaks; e também de Chelsea Manning, sem a qual não teríamos a prova do que os Estados Unidos estavam fazendo, não apenas no Iraque e no Afeganistão, mas em todo o mundo. Ao tratar desse assunto, também abordarei a natureza mutável dos “segredos” governamentais, o que significava revelá-los no passado e no presente.
Nos dias e no mundo de hoje, assim como a escala dos poderes do governo no sentido de bisbilhotar nossas vidas e atividades aumentou exponencialmente – por exemplo, o Prism da Agência Nacional de Segurança dos EUA (NSA) e o Pegasus da companhia privada NSO –, a escala dos vazamentos também aumentou. Os Pentagon Papers de Ellsberg tinham apenas 7 mil páginas, e ele as fotocopiou à mão (Conforme Daniel Ellsberg no livro The Doomsday Machine: Confessions of a Nuclear War Planner). Os “documentos” de Chelsea Manning, que Assange divulgou, ganhando a inimizade do governo dos EUA, consistiam em cerca de 750 mil documentos (registros da Guerra do Iraque, registros da Guerra do Afeganistão e telegramas diplomáticos dos EUA). Manning usou seu computador para copiar esse enorme acervo de dados. Ellsberg tinha uma das mais altas autorizações de segurança do governo dos EUA. Supõe-se que Snowden, um administrador de sistemas, tenha “exfiltrado” mais de um milhão de documentos da NSA.
Manning estava em uma posição inferior nas fileiras militares e era um mero cabo. Assange havia identificado uma característica fundamental de nossa época: a revolução digital significa a enorme centralização das informações e também a facilidade com que elas podem ser liberadas. Em uma conferência em 1984, o autor Stewart Brand, em uma conversa com Steve Wozniak, cofundador da Apple, trouxe essa dualidade da informação na era digital: a centralização da informação, já que ela é tão valiosa para os governantes. E também a facilidade de sua duplicação e, portanto, sua liberação dos governantes. Foi por isso que Assange criou o WikiLeaks. As pessoas que tinham acesso a essas informações valiosas armazenadas em cofres “seguros” do governo poderiam usar o WikiLeaks para alcançar o povo. Ambos usam o poder das tecnologias digitais e sua capacidade de produzir cópias, mas para fins completamente diferentes.
Em 1971, há pouco mais de 50 anos, Daniel Ellsberg vazou um estudo realizado pelo Departamento de Defesa dos EUA – os Pentagon Papers – sobre a Guerra do Vietnã para o New York Times e, posteriormente, para várias outras organizações de notícias. O movimento contra a Guerra do Vietnã, que havia explodido nos Estados Unidos na época, com efeitos em cascata em todo o mundo para a minha geração, transformou Ellsberg em um radical. Assim como aconteceu com muitos de nós em todo o mundo que se manifestaram contra os Estados Unidos e sua guerra. A Guerra do Vietnã desacreditou o império americano e produziu uma geração radical, da qual Daniel Ellsberg era um orgulhoso membro.
Os Pentagon Papers expuseram em detalhes por que a Guerra do Vietnã já era uma causa perdida e por que o povo vietnamita derrotaria o governo fantoche neocolonial de Ngo Dinh Diem, apoiado pelos Estados Unidos no Vietnã do Sul. Embora um estudo tenha concluído em 1968 que os Estados Unidos não poderiam vencer, os EUA haviam ampliado a ação, passando de uma guerra terrestre e aérea contra as forças de libertação vietnamitas no Vietnã do Sul para o bombardeio aéreo do Vietnã do Norte e do Camboja ao mesmo tempo. Ellsberg acreditava que, se o público americano soubesse a verdade sobre a Guerra do Vietnã, ajudaria a acabar com a guerra. Foi por isso que ele e um ex-colega, Anthony Russo, compartilharam os documentos do Pentágono com a imprensa. Ele acreditava que o povo dos EUA tinha o direito de saber sobre a guerra que estava sendo travada em seu nome.
A exposição dos documentos do Pentágono ajudou o movimento contra a guerra, mas não a interrompeu. Foram necessários mais quatro anos – abril de 1975 – para que os libertadores vietnamitas tomassem Saigon. As imagens das forças americanas partindo em ignomínia, agarradas a helicópteros enquanto decolavam do telhado da embaixada dos EUA, são semelhantes ao que vimos recentemente em Cabul, no Afeganistão.
Quando chegamos ao período da Guerra do Iraque, o mundo da informação havia mudado. As informações não estavam mais em formato de papel. As cópias também não eram feitas em papel. A digitalização das informações significava que enormes quantidades poderiam ser coletadas, armazenadas e usadas em tempo real para fins de guerra: tanto em sua variedade físico-cinética quanto na guerra de informações. Todo o poder dos Estados Unidos, seu poder tecnológico e seu poder financeiro poderiam ser utilizados para construir não apenas a máquina de guerra dos EUA, mas também o que hoje chamamos de estado de vigilância; não apenas a invasão de todos os aspectos de nossas vidas, mas também a criação de novas mãos invisíveis do Ministério da Verdade. Trata-se de uma guerra de informações de um tipo diferente daquela dos dias em que Ellsberg fotocopiou os Pentagon Papers.
Esse é o mundo que Assange viu e entendeu. Se Ellsberg entendeu o mundo do poder, Assange entendeu a natureza mutável de como as informações são continuamente criadas em grandes quantidades pelo governo, armazenadas e transmitidas. A própria natureza da tecnologia que permite essa duplicação quase sem custos de informações e seus fluxos também a torna vulnerável a ser compartilhada e disponibilizada ao público.
Vamos dar uma olhada em alguns números. Na época de Ellsberg, havia talvez algumas centenas de pessoas, talvez no máximo mil, que tinham acesso aos documentos do Pentágono e podiam fotocopiá-los à mão, como ele fez. Ele tinha um nível de segurança GS-18, equivalente civil a um nível de autorização em algum lugar entre major-general e tenente-general nas Forças Armadas. Chelsea Manning era uma “especialista”, o posto equivalente ao de um cabo nas Forças Armadas dos EUA. É a natureza da mudança na tecnologia que possibilitou que um especialista com a patente de cabo desse um golpe na guerra dos EUA no Iraque e no Afeganistão. Você precisa de especialistas em tecnologia para fazer funcionar as porcas e os parafusos da infraestrutura global de informações. Eles podem ter patentes “baixas”, mas, em virtude de estarem mais próximos das informações nessas vastas redes militares e diplomáticas mantidas pelos governos, eles têm acesso total. E o computador, como um dispositivo de cópia, é um dispositivo muito mais potente para copiar informações. E, por fim, os discos nos quais copiamos dados hoje em dia, inclusive o nosso humilde pen drive/cartão de memória, podem armazenar centenas de milhares de páginas!
Foi Assange e o WikiLeaks que possibilitaram que as informações de Manning chegassem às pessoas em todo o mundo. E mesmo depois que ele e Manning foram presos, encarcerados e isolados, as informações do Wikileaks ainda continuam acessíveis a todos nós. Ainda hoje, o vídeo “Assassinato Colateral”, em Bagdá, publicado no WikiLeaks, é visto em todo o mundo e mostra que os Estados Unidos estavam mentindo e envolvidos em um encobrimento maciço de seus crimes de guerra. Os Cabos Diplomáticos do Wikileaks informaram o povo tunisiano sobre o governo cleptocrático da família Ben Ali e deram início ao que mais tarde foi chamado de Primavera Árabe.
A batalha dos habitantes da ilha de Chagos na Corte Internacional de Justiça (ICJ), ilegalmente removidos pelo Reino Unido e pelos Estados Unidos para estabelecer a base naval americana em Diego Garcia, foi parcialmente baseada em documentos do WikiLeaks. Essa é apenas uma fração muito pequena das informações que agora estão disponíveis para os ativistas, e elas não podem ser apagadas da Internet nem de nossa memória. Assim como o Estado de vigilância invadiu todos os cantos e recantos de nossas vidas, a necessidade patológica do Estado de vigilância de acessar e armazenar todas essas informações também torna o Estado poroso e vulnerável.
O exemplo mais recente dessa vulnerabilidade é que Jack Teixeira, um jovem de 21 anos da Guarda Nacional Aérea, tenha tido acesso a documentos ultrassecretos do Pentágono e da CIA sobre a Ucrânia. Ele compartilhou esses documentos em um servidor privado de jogos do Discord, não com o objetivo nobre de impedir a guerra, mas simplesmente para se gabar. Se esse foi o único vazamento, se outros também estão vazando documentos para criar uma cortina de fumaça na guerra, se é uma mistura de vazamentos ou se também são informações plantadas, é outra história. O que é importante para essa história é que o aviador Teixeira, apesar de estar na base da hierarquia da Força Aérea dos EUA, tem acesso a documentos ultrassecretos, normalmente vistos pelos altos escalões das Forças Armadas e pelas autoridades de inteligência dos Estados Unidos. Ele fazia parte de uma equipe que gerenciava a rede principal e era uma das 1,5 milhão de pessoas que tinham esse nível de acesso.
Sim, estamos hoje em um panóptico do estado de vigilância em que nossos governantes podem observar cada parte de nossas vidas. Mas o que Manning e Teixeira nos mostram é que a mesma tecnologia que permite que eles vejam o que estamos fazendo também funciona ao contrário. Enquanto tivermos Assange, Ellsberg, Manning e outros, eles também serão visíveis para nós. Como escreveu o poeta inglês Shelly em 1819, após o Massacre de Peterloo: “Vocês são muitos, eles são poucos”. Isso também não mudou na era digital.
Biografia do autor: Este artigo foi produzido em uma parceria entre a Newsclick e o Globetrotter e traduzido por Pedro Marin para a Revista Opera. Prabir Purkayastha é fundador e editor do Newsclick.in, uma plataforma de mídia digital. Ele é um ativista da ciência e do movimento dos softwares livres.
Fonte: Globetrotter