Uma outra autobiografia: todas as vidas de Rita Lee por ela mesma

Jaqueline Ribeiro
Rita Lee: outra autobiografia (2023) - Reprodução

Depois de décadas na estrada em grupos ou lado a lado com sua alma gêmea, Rita Lee anunciou que se aposentaria em 2012. E realmente viveu o janeiro daquele ano como se tivesse sido milimetricamente calculado: no começo do mês, mostrou a bunda no palco do show de Saquarema. Já no final do mês, no show que encerraria sua passagem pelos palcos, enfrentou policiais que incomodavam a plateia à procura de drogas em Aracaju. A despedida definitiva só aconteceria no ano seguinte, no aniversário da sua casa, São Paulo. 

Após isso, as notícias sobre a cantora giravam principalmente em torno da situação do processo movido pelos policiais ofendidos (até o lançamento da primeira autobiografia, em 2016, Rita ainda não podia se pronunciar sobre o assunto da forma como queria), do abandono dos icônicos cabelos vermelhos e dos seus livros. A trégua no noticiário terminou quando descobriu o câncer em 2021. E dali veio Rita Lee: outra autobiografia (2023), lançado postumamente.

Rita Lee: outra autobiografia (2023)
Rita Lee: outra autobiografia (2023)

É interessante notar que, enquanto na Autobiografia o tempo predominante é passado, fazendo o resgate do que se viveu e do que se lembra de ter vivido (claro, com a importante colaboração de Phantom, Guilherme Samora, amigo e especialista ritalístico), nesta Outra autobiografia, a narrativa frequentemente remete a um diário sem as características datas (elas até aparecem na narrativa, mas não são sequer regulares), que poderia muito bem ser o diário de uma mulher com câncer, qualquer mulher, se não fosse Rita Lee.

No podcast da Globo Livros, que nasceu junto com o livro, Samora comenta que Rita escreveu até onde achou que devia e conseguia. Independemente de quando deu por encerrado o processo de escrita, ela está toda lá, o livro tem todas suas digitais. Seja nas referências às músicas, nas costumeiras frases em inglês ou na franqueza corajosa com que narra detalhes do tratamento, cada apuro, medo e fragilidade. Sem contar as abundantes opiniões sobre os mais variados temas. Nada lhe escapa. Há comentários sobre as mortes de Elza e Gal, sim, mas também acabamos sabendo quais são seus posicionamentos sobre desde cemitérios até cannabis. A política representa um capítulo à parte em suas preocupações: Rita não só deu o nome de Jair para seu câncer, como a imprensa alardeou, como chamou os outros focos que apareceram de seus filhos.    
Meses antes do seu falecimento, Rita Lee já vinha recebendo homenagens. Além da exposição que ela conta no livro ter visitado, há registro de que conseguiu assistir pela TV ao menos uma das homenagens. Depois, claro, multiplicaram-se em muitas as iniciativas. Voltou a ser trilha de novela (“Saúde” é tema de uma das protagonistas de Elas por Elas, que está no ar), apareceu em uma daquelas coleções da Folha, disponibilizaram A marca da zorra nas plataformas de streaming e Roberto de Carvalho mesmo recentemente subiu ao palco duas vezes para acompanhar Marisa Monte em músicas que fez em parceria com a eterna namorada. No livro, quando comenta que nunca desistiria do Brasil, que daqui nunca sairia, imagina como seria se chegasse aos 107 anos, uma nítida demonstração de humildade de quem sabe que vai viver bem mais que isso na coragem das ovelhas negras, como a boa Padroeira da liberdade que é.

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Jaqueline Ribeiro é bacharela em Comunicação/Jornalismo pela UEMG-Frutal, interessada por tudo o que conta histórias, escreve sobre livros, filmes e discos