Imagine você estar no meio do semiárido, longe de uma Unidade Básica de Saúde (UBS), com pouco suporte da rede de internet em plena pandemia da covid-19 e, nesse caos, ter a saúde acompanhada por um grupo de voluntários da comunidade que conta com o apoio de um aplicativo. Esta é a realidade de diversas famílias dos assentamentos da reforma agrária no Ceará, dentre eles o Vida Nova-Transval, no município de Canindé.
Percebendo a fragilidade dos territórios onde o Sistema Único de Saúde (SUS) chega com mais dificuldades, um grupo de voluntários formado por mulheres e homens dos assentamentos que conhecem a realidade das comunidades, assumiram o desafio de traduzir o que era a pandemia e os cuidados necessários para o controle da doença.
::Estreia nesta sexta documentário sobre as condições de trabalho no SUS durante a pandemia::
As pessoas voluntárias foram em busca de orientação técnica junto à Rede de Médicas e Médicos Populares e à Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) para entenderem o que era a doença, como ela se manifesta e os cuidados para evitar a contaminação pelo vírus.
Para um território desassistido de saúde pública e com escassez de água, as alternativas recaem sobre a própria comunidade. Assim nasce a experiência dos Agentes Populares de Saúde do Campo.
Essa negligência do Estado com a saúde das populações camponesas é motivo de preocupação para o médico Fernando Paixão, um dos idealizadores do projeto. “Diante dessa realidade da pandemia, que já matou mais de 500 mil pessoas, a organização popular para cuidar da saúde da população e das comunidades se torna algo fundamental. E os agentes populares têm esse papel de cuidado nos territórios”, enfatiza.
Confira aqui: VÍDEO | Por que todos os brasileiros deveriam se preocupar com o SUS?
Francisca Maria Silva, uma das assentadas que faz parte do grupo das agentes populares, compreende bem essa realidade. Reconhecendo a importância e a necessidade imposta pela ausência dos agentes comunitários de saúde ela aceitou o convite e se sente feliz com a nova responsabilidade. “É uma forma de poder ajudar as pessoas”, afirma.
A comunidade contou com um grupo multidisciplinar formado por educadores populares, profissionais de saúde e da tecnologia da informação. / Foto: Eva Sullivan
Para auxiliar nos cuidados a territórios como o Vida Nova-Transval, a comunidade contou com um grupo multidisciplinar formado por educadores populares, profissionais de saúde e da tecnologia da informação.
Conjuntamente desenvolveram uma metodologia de formação à distância para qualificar a atuação dos Agentes no acompanhado das 85 famílias, durante o distanciamento social. Orientar sobre a saúde à distância e por meio virtual foi algo novo para todos os envolvidos.
A médica Ana Paula Dias de Sá, também idealizadora do projeto, aponta outros desafios que marcam o processo formativo para além do acesso à tecnologia.
“Temos a necessidade de implementação da Política Nacional de Saúde Integral das Populações do Campo, das Florestas e das Águas, existente desde 2011 e que pouco se materializou até esses dias. Uma outra necessidade observada é em relação ao modelo de Vigilância em Saúde que ainda se organiza de maneira centralizada e hierarquizada sem refletir dimensões específicas nem da população e nem dos territórios, colocando determinados grupos populacionais na invisibilidade das políticas públicas”, alerta.
Desafios da comunicação
O campo brasileiro não é carente apenas da saúde pública. Outros direitos, como o acesso à comunicação também estão no rol das ausências nestas comunidades.
O uso da internet nesse território está limitado ao aparelho celular para mais de 85% da população e a maioria se dá por meio de pacotes de dados limitado. Ainda que a rede de telefonia e internet, além da posse de equipamentos seja de baixo acesso, má qualidade ou até mesmo inexistente no território, essas foram as únicas formas possíveis de se comunicar durante o período de distanciamento social da pandemia.
E, ainda que de forma precária, as ferramentas de tecnologia e da informação foram fundamentais e serviram de base para todo o processo formativo e a produção das informações.
Buscando equacionar esses desafios a estratégia foi desenvolver outros caminhos para além da formação-ação à distância. No último dia 11 de julho os agentes do assentamento Vida Nova-Transval participaram da Oficina de Tecnologia e conheceram o sistema agentes do campo.
A atividade contou com um momento teórico, onde foram apresentadas as ferramentas tecnológicas que farão parte da rotina do grupo, foi apresentado e manuseado pelos agentes, e outro prático, quando o grupo visitou famílias acompanhadas pelo projeto para alimentação do instrumento e armazenamento dos dados. Ambas as atividades foram realizadas respeitando todas as orientações sanitárias.
::Confiança no SUS dispara e 61% consideram o sistema público melhor que o privado::
O sistema envolve uma série de soluções tecnológicas como um Site Web, bancos de dados distribuídos, um aplicativo para dispositivo móvel (App), além de material didático para auxiliar no trabalho dos Agentes.
Por meio da coleta de dados, via aparelho de celular, as pessoas envolvidas conseguirão monitorar a situação da saúde, as condições socioeconômicas e de infraestrutura dessas famílias e das comunidades. Esses dados expressarão os problemas e potencialidades de cada localidade, embasando assim os agentes e as comunidades na cobrança por políticas e serviços públicos.
“Será possível sistematizar um conjunto de dados que hoje estão espalhados e não catalogados e, por fim, gerar informações para a tomada de decisão coletiva e possibilitar ações mais efetivas. Esperamos também que esse sistema sirva para democratizar as tecnologias da informação”, afirma o analista e desenvolvedor do sistema Ivandro Claudino.
Por meio da coleta de dados, via aparelho de celular, as pessoas envolvidas conseguirão monitorar a situação da saúde, as condições socioeconômicas, entre outros. / Foto: Eva Sullivan
Tanto a experiência dos agentes como o app são frutos dos trabalhos de intervenção dos mestrandos em Políticas de Saúde, Ana Paula Dias de Sá e Fernando Paixão, vinculados ao programa de pós-graduação da Escola de Governo Fiocruz-Brasília em parceria com a Fiocruz-Pernambuco e Fiocruz Ceará.
Para o coordenador do programa, André Fenner, esta é uma experiência que coloca em prática a teoria da Vigilância Popular em Saúde junto às comunidades mais vulneráveis, onde a “parceria realizada entre a Fiocruz, a Rede Nacional de Médicas e Médicos Populares e o Movimento dos Trabalhadores e Trabalhadoras Rurais Sem Terra (MST) traz uma característica única que possibilita uma prática sanitária de enfrentamento a covid-19”.
Para receber nossas matérias diretamente no seu celular clique aqui.
Fonte: BdF Ceará
Edição: Monyse Ravena