A poucos dias para o significativo evento 8M - o dia histórico de mobilização feminista e anti patriarcal do 8 de março - nós, mulheres, convivemos com o gosto amargo da violência física, verbal, simbólica e banalizada como trivialidade cotidiana.
No Brasil, os reflexos do conflito na Ucrânia ecoaram na voz patética do deputado estadual paulista Arthur do Val - apelidado de Mamãe falei e filiado ao Podemos - que afirmou que as mulheres ucranianas “são fáceis porque são pobres”.
O áudio foi enviado para um grupo de amigos brasileiros enquanto o parlamentar encontrava-se no país estrangeiro com o compromisso de mostrar ao Brasil como o conflito se desenrolava desde uma perspectiva in loco, como anunciou nas suas redes sociais. Dias depois do vazamento, a declaração foi considerada pelo parlamentar como um equívoco proferido durante um “momento de empolgação”.
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Mas, por que, afinal, faz sentido refletir sobre esse acontecimento às vésperas do 8M?
Nos últimos anos, tem se tornado uma realidade cada vez mais escancarada o lugar de vulnerabilidade que o patriarcado nos coloca: foram as mulheres as principais afetadas durante a pandemia justamente pelo papel histórico associado aos cuidados com a sobrecarga do trabalho.
Em situações de guerra e conflito, tal vulnerabilidade é evidenciada pela transformação dos corpos femininos em locais de disputa, em verdadeiros campos de batalha como refletiu a antropóloga Rita Segatto.
Recentemente, uma pesquisa divulgada pelo El País mostrou a situação de crianças haitianas, nascidas das relações muitas vezes não consensuais entre os chamados Capacetes Azuis - soldados, inclusive brasileiros, enviados ao país como parte das forças de paz da Organização das Nações Unidas (ONU) - e mães do Haiti.
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Os resultados da pesquisa apontam não apenas para a ausência dos Capacetes Azuis na vida dessa nova geração - entre os relatos colhidos, muitos sinalizam a repatriação desses homens após confirmada a gravidez -, mas também para o agravamento da vulnerabilidade das mães após o nascimento dessas crianças, que além da ausência do progenitor também sofreram, em alguns casos, abandono das famílias e desatendimento do Estado e qualquer outra instituição. Muitas vezes, essas gestações foram resultantes de relações sexuais que aconteciam em troca de comida ou por estupros de meninas de 11 anos.
Mulheres em situação de conflito
Recorrendo a passados mais longínquos, é perceptível que a vulnerabilidade que recai aos nossos corpos frente a situações de conflito ou privação de liberdade provém de um caminho mais longo.
Um recente julgamento na Argentina chamou a atenção para a necessidade de um reajuste da narrativa do passado sobre a situação de presas políticas da ditadura: por muito tempo as mulheres que sobreviveram ao cárcere e campos de concentração do período foram consideradas alvo de suspeitas sob a justificativa de que haviam colaborado com seus algozes para conseguir a liberdade.
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Como ficou evidente nos diversos relatos deixados por essas mulheres, seus corpos e destinos eram totalmente submetidos às decisões dos, atualmente julgados e condenados, repressores - algo que também ocorreu no contexto ditatorial brasileiro embora pouco se mencione o tema.
As denúncias nos informam sobre um contexto de sistemáticas e constantes violações promovidas pelos agentes de Estado que trabalhavam nos órgãos de repressão e por quem mais fosse autorizado por esses agentes a fazê-lo.
Algumas dessas referências e outras mais, que explicam sobre a situação de mulheres em contexto de conflito, foram mais cruamente descritas pelo jornalista Jamil Chade em uma recente carta pública, que endereçou para o deputado em questão, construída a partir de fragmentos de sua memória em relação aos inúmeros conflitos que conheceu como (verdadeiramente) correspondente interessado em retratar tais acontecimentos.
Posto que já contamos com contribuições como a de Chade para relatar sobre a dimensão de o que significa portar um corpo não-masculino em um contexto de guerra, faz sentido pensar aqui sobre o impacto da fala do parlamentar.
Trata-se de uma fala proferida no espaço privado, no espaço de diálogo virtual entre amigos homens, no tão conhecido clube do bolinha: o lugar que acolhe a reafirmação dos preceitos patriarcais, que é o lugar de excelência da masculinidade mais ostensiva, no território livre para as consideradas piadas e afirmações machistas - o que é matéria de pesquisa da psicóloga Valeska Zanello
A quebra do espaço privado dessa confraria tão ferozmente defendida na ótica de um pacto masculino-cis-hétero nos evidencia a necessidade de posicionamento dos homens que ainda comungam com essa lógica. Não pode se sustentar a salvaguarda desse território em sobreposição ao espaço mais íntimo e individual que são nossos corpos.
Em síntese, é no espaço privado do grupo da internet que essas falas são referendadas e é no espaço público da guerra que nossos corpos são lançados como territórios a serem conquistados. A objetificação desses corpos fazem com que esse espaço privado mais íntimo seja transformado em espaço público, acessível e ao qual sua própria dona não têm domínio.
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O 8 de março de 2022 que se avizinha tem como força mobilizadora uma lista (infelizmente) extensa de motivos de repúdio e, simultaneamente, uma energia propulsora advinda da necessidade de reconquistar a rua, de ocupar o espaço público que é cenário da objetificação dos nossos corpos em um cenário no qual nossos corpos existem e resistem.
*Paula Franco é doutoranda em História pela UnB, pesquisadora de temas ligados à justiça de transição e comissões da verdade da América Latina.
**Este é um artigo de opinião. A visão da autora não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.
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Fonte: BdF Distrito Federal
Edição: Flávia Quirino
Análise | “Empolgação” de Arthur do Val expõe violência contra as mulheres em tempos de guerras
Equipe de jornalistas, colaboradores e estagiários do Jornal DC - Diário Carioca