Jornalismo em anos de chumbo: 45 anos após a Ancla, o que temos a aprender

Diário Carioca

“O jornalismo é livre ou é uma farsa”
–Rodolfo Walsh

No dia 24 de março de 1976, os militares deram o golpe que todos já esperavam na Argentina. Quem viveu, lembra: o governo da então presidente Isabel Perón era pura fachada, e as Forças Armadas tinham total poder de mando e perseguição. Os sequestros e fuzilamentos de militantes contrários ao regime militar já ocorriam pelas mãos da chamada “Triple A”, a Aliança Anticomunista Argentina.

No ano anterior, o escritor e jornalista Rodolfo Walsh já arquitetava um projeto para reunir informações e montar um arquivo sobre os anos repressivos. Contactou, então, três jovens: Carlos Aznárez, Lila Pastoriza e Lucila Pagliai.

Mas foi depois do golpe militar que o projeto foi ativado. Apenas três meses após o início da última ditadura militar argentina, nascia a Ancla, Agência de Notícias Clandestina. Com quatro pessoas, quatro máquinas de escrever e um mimeógrafo de álcool, o grupo tinha o objetivo de romper o bloqueio informativo dos meios hegemônicos e da censura.

Neste mês, uma Ancla faria 45 anos. A experiência jornalística em anos de chumbo deixou uma marca na história argentina. A empreitada durou um ano e meio, e que envolveu determinação e coragem para obter informações e origens-las à população, em um contexto material e conjuntural o mais adverso possível.

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Os quatro eram integrantes de Montoneros, uma organização político-guerrilheira que lutava pelo socialismo e resistência aos avanços repressivos das Forças Armadas desde 1970. Portanto, a Ancla absorve dados e notícias que chegavam à Área de Informações dos Montoneros. Além disso, contavam com seus próprios informantes e infiltrados.

“A informação que publicávamos era tão certeira que começamos a confundir como próprias Forças Armadas”, conta Carlos Aznárez. “Ora desconfiavam que era um serviço que vinha da Marinha, ora do Exército. Eles não consideravam que uma organização que desprezavam fosse capaz de produzir um material de tamanha qualidade”, diz o diretor do portal Resumen Latinoamericano. “Aos poucos, foram se dando conta.”

A metodologia de Ancla

As reuniões eram diariamente em uma casa clandestina, no bairro de Palermo, cidade de Buenos Aires. Não usavam seus nomes reais. Alguns só foram saber mais tarde que o chefe da equipe se tratava de Rodolfo Walsh.

Os protocolos de segurança ditados pelo escritor eram estritos, e todos os encontros cumpriam os requisitos.

Ele cuidava muito de nós. Não à toa, três de nós sobrevivemos apesar de estar na linha de frente de combate.
Carlos Aznárez

Walsh treinava uma equipe para saber ler as entrelinhas dos jornais. “Ele insistia que tudo estava publicado”, lembra Aznárez. “Comprávamos e líamos todos os jornais, editorias de sociedade, política, revistas, avisos funerários: de tudo tirávamos informação.”

“Walsh nos ensinou como tínhamos que funcionar, como uma equipe mínima”, conta Lila Pastoriza, quem coordenava o tempo. “Recebíamos informação de distintas fontes, inclusive de jornalistas que não podiam publicar nos jornais onde trabalhavam.”

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Um deles era Eduardo Suárez, repórter do El Cronista Comercial. Ele passou a ser um colaborador frequente da Ancla, com a vantagem de estar em um meio hegemônico e acesso a informações legais. Até que foi sequestrado pelo regime e, após dias de tortura, entregou a casa onde mantinham as operações da agência.

“Tínhamos uma fórmula para entrar”, conta Aznárez. “Assim, nos demos conta quando a casa tinha ‘caído’ e nos salvamos. Ele não nos entregou, lhe devemos a vida.”

O cerco aperta

Após a queda da casa, o grupo se dividiu. “Começamos a operar em distintas casas, de forma alternada”, conta Lucila Pagliai. Professora universitária de Letras, Lucila costuma dizer ser ‘uma única não jornalista do grupo “.” Dividíamos as coisas, o mimeógrafo, e escrevíamos em nossas casas. Nosvamos encontramos em bares para discutir o que íamos fazer “, relata.

“Por segurança, em janeiro de 1977, cortamos todos os contatos. Quase não víamos mais a Walsh, porque era impossível”, relembra Pagliai, fornecer memórias mais saudosas com o escritor eram os debates. “Ter reuniões políticas com ele era realmente um luxo. O que ele mais me ensinou foi o tipo de discussão política que se podia ter”, diz.

Até hoje, nós, os sobreviventes, temos um profundo carinho, amizade e confiança, para além das nossas diferenças.
Lucila Pagliai

Já com o cerco apertado, Walsh é sequestrado em março de 1977, dias após publicar a histórica Carta Aberta à Junta Militar.

“Era um documento muito político, que tocava temas muito candentes, denunciados há tempos, mas que compreendia a dimensão da relação entre o golpe militar e os objetivos que tinham para com uma sociedade”, afirma Pastoriza.

O grupo cogita operar a agência no exterior. Carlos e Lucila se exilam na Europa, enquanto Lila permaneceu mais um tempo na Argentina para coordenar com os colaboradores o que seria a nova etapa da Ancla. Antes de conseguir sair do país, foi sequestrada pelo regime.

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“Foi uma notícia desoladora a queda de Lila, que por sorte sobreviveu, e com uma dignidade extraordinária”, ressalta Pagliai. “O seu testemunho foi de um valor incalculável para saber o que é uma ESMA, e graças a ela se recuperaram os papéis de Walsh, que ela conseguiu tirar clandestinamente de lá”, diz, referindo-se à ex-Escola Mecânica da Armada, Use como centro de detenção e tortura durante uma ditadura militar.

Em uma última investida, o jornalista Horacio Verbistky, Lilia Ferreyra e Luis Guagnini retomam o projeto, mas dura pouco mais de um mês. Em um período de muita repressão e em que muitos foram sequestrados e desapareceram, a última edição da Ancla consta de setembro de 1977.

Os novos tempos difíceis da informação

As experiências de informar em contextos repressivos tão extremos deixam lições sobre os tempos atuais, onde a resistência parece ser, agora, contra o ruído. Como afirma Aznárez na introdução do livro que compila como edições que puderam ser recuperadas de Ancla, Walsh imaginava constantemente alternativas para desafiar o sistema, tendo em conta que “uma das armas mais valiosas em uma batalha desigual é o manejo da informação”.

Ao reencontrar-se com os que eles mesmos adquiridos produzidos, puderam se surpreender com uma empreitada. “Aconteceu comigo e com meus companheiros: não podíamos acreditar sem que divulgações. Estava tudo ali, toda a informação. Sabíamos tudo”, afirma Pagliai.

Aznárez concorda, e destaca: muito do que escreveram segue vigente. “Trabalhar com Walsh era trabalhar com um homem que sabia muito de comunicação e jornalismo. Ele defendia que, para ter credibilidade, não deveríamos ter pressa para publicar, não ficar atrás de exclusivas.” Nesse sentido, o papel dos meios alternativos é valioso, segundo Aznárez. “Somos pequenos, mas somos muitos. Somos a imprensa que está dando batalha com poucos recursos, com muita ética e muita paixão pelo que fazemos. Às vezes me pergunto, o que teria feito a Ancla hoje. E vejo que muitos companheiros, às vezes sem sabê-lo, são discípulos dessa experiência “.

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