O governo federal publicou apenas nesta sexta-feira (30), dia seguinte ao incêndio que afetou o galpão da Cinemateca Brasileira em São Paulo, um edital de chamamento público para a escolha de uma “entidade privada sem fins lucrativos” para gerir o órgão por cinco anos.
O local abriga parte do acervo da instituição, constituído de mais de 100 anos de história do maior acervo audiovisual da América Latina, em cerca de 250 mil rolos de filmes. Segundo o comandante do operação do Corpo de Bombeiros, a intensidade das chamas e a densidade da fumaça indica a presença de materiais altamente inflamáveis.
Em julho de 2020, o Ministério Público Federal em São Paulo (MPF-SP) moveu ação na Justiça contra a União por abandono da Cinemateca. A publicação do edital era uma promessa feita pela Secretaria Especial de Cultura, do Ministério do Turismo, ao MPF.
De acordo com o texto publicado no Diário Oficial da União, o objetivo do chamamento é “escolher pessoa jurídica de direito privado sem fins lucrativos cujas atividades sejam dirigidas à cultura, já qualificada ou apta a se qualificar como organização social para firmar parceria com a Secretaria Especial de Cultura do Ministério do Turismo, mediante a celebração de contrato de gestão, para a execução de atividades de guarda, preservação, documentação e difusão do acervo audiovisual da produção nacional por meio da gestão, operação e manutenção da Cinemateca Brasileira”.
As entidades que se candidatarem para a gestão da Cinemateca deverão apresentar um plano para captação e geração de receitas com 4 tópicos detalhados:
– serviços realizados pela Cinemateca Brasileira, como a guarda, ações de restauro e conservação de acervos privados de terceiros depositados no local;
– locação dos espaços da Cinemateca Brasileira para a realização de eventos de terceiros;
– parcerias com entidades privadas e públicas, com ou sem o uso de incentivo fiscal;
– realização de eventos pela entidade.
Descaso na Cinemateca
A promotoria questionou a falta de contrato para gestão da instituição e destaca problemas como risco de incêndio, falta de vigilância, atrasos nas contas de água e luz, e de salários. Em agosto passado, o desmonte e fragilização da instituição pelo governo Bolsonaro avançou, com o anúncio de demissões do pessoal técnico da instituição.
No entanto, em maio último, o MPF-SP suspendeu a ação contra a União depois que o governo federal se comprometeu a mostrar as ações implementadas pela preservação do patrimônio no prazo de até 45 dias, o que ainda não ocorreu.
Os cuidados de manutenção e preservação do acervo são feitos por mão de obra altamente especializada. Em sucessivas reportagens, o Brasil de Fato mostrou que, sem corpo técnico capacitado, toda a memória nacional ali guardada corria sério risco de desaparecer.
“A possibilidade de autocombustão das películas em nitrato de celulose, e o consequente risco de incêndio frequentemente recebem mais atenção da mídia e do público. A instituição enfrentou quatro incêndios em seus 74 anos, sendo o último em 2016, com a destruição de cerca de 500 obras. O risco de um novo incêndio é real”, alertaram os trabalhadores da instituição em abril deste ano.
O acervo é constituído por 250 mil rolos de filmes, alguns compostos por nitrato de celulose, que podem entrar em autocombustão caso não sejam mantidas as condições de refrigeração. No ano passado, um temporal alagou o galpão e parte do acervo foi, novamente, comprometido.
“Não há corpo técnico contratado, o acervo segue desacompanhado e não há qualquer informação sobre suas condições. Por esse motivo, lançamos um alerta acerca dos riscos que correm o acervo, os equipamentos, as bases de dados e a edificação da instituição”, diz a carta endereçada ao atual secretário especial de Cultura, Mario Frias em abril deste ano.
Esse alerta vem sendo feito pelos trabalhadores da instituição desde 2020, mas nenhuma medida foi tomada pela Secretaria de Cultura do governo de Jair Bolsonaro (sem partido).
Outro lado
Em nota enviada à imprensa na noite desta quinta-feira (29), a Secretaria Especial de Cultura diz que “lamenta profundamente e acompanha de perto o incêndio que atinge um galpão da Cinemateca Brasileira, em São Paulo (SP)”. A secretaria afirma ainda que “todo o sistema de climatização do espaço passou por manutenção há cerca de um mês”.
“A Secretaria já solicitou apoio à Polícia Federal para investigação das causas do incêndio e só após o seu controle total pelo Corpo de Bombeiros que atua no local poderá determinar o impacto e as ações necessárias para uma eventual recuperação do acervo e, também, do espaço físico. Por fim, o governo federal, por meio da secretaria, reafirma o seu compromisso com o espaço e com a manutenção de sua história”, diz o texto.
Edição: Leandro Melito