A Imperatriz Leopoldinense está confiante no bicampeonato. Para conquistar novamente o título aposta no enredo baseado no livreto O testamento da cigana Esmeralda, do poeta pernambucano de cordel Leandro Gomes de Barros.
Apaixonado pela produção artística da cultura brasileira, o carnavalesco Leandro Vieira disse que a escolha surgiu de uma pesquisa que fez quando estava debruçado no ano passado na literatura de cordel para falar de Lampião no enredo O Aperreio do Cabra Que o Excomungado Tratou com Má-querença e o Santíssimo Não Deu Guarida, campeão de 2023.
Enredo da Imperatriz Leopoldinense – Foto Divulgação
Agora, para 2024, o tema é Com a sorte virada pra lua, segundo o testamento da cigana Esmeralda. Leandro Gomes de Barros é autor de cordéis que inspiraram o escritor, filósofo e dramaturgo paraibano Ariano Suassuna a escrever o Auto da Compadecida.
No meio da produção literária do Leandro Gomes de Barros, chamado pelo carnavalesco de “um paraibano incrível”, encontrou o livreto Testamento da Cigana Esmeralda, que é ficcional e, para ele, traz um olhar do autor para a mística do universo cigano e, a partir disso, expressa a forma como vê a cultura popular.
“A ideia de adivinhações, da leitura das mãos, da sina de uma pessoa guardada na palma da mão, a influência dos astros e do zodíaco, ou seja, é cultura popular brasileira na veia, e tudo que tem cultura popular na veia, me encanta. Achei que esse era um mote muito bom para a produção de uma nova apresentação, sobretudo para mim, que desde da saída da Mangueira [em 2022] para a Imperatriz tenho investido nessa ideia de carnaval ficcional. O carnaval mais voltado para o delírio”, disse o carnavalesco em entrevista à Agência Brasil.
Na visão de Leandro Vieira, a comunidade da escola recebeu o enredo de 2024 ainda sob o impacto do anterior e do campeonato. “Esse enredo, que de alguma forma é uma continuidade da Imperatriz Leopoldinense no campo do delírio, é recebido com muito calor, porque cria-se uma expectativa de que a Imperatriz pode se dar bem com isso. A comunidade avalia muito bem essas possibilidades de se dar bem, de se mostrar poderosa, pujante e viva”, avaliou.
Leandro Vieira, que gosta de manter em sigilo a divisão dos setores, “para preservar determinadas coisas para o dia [do desfile]”, revelou que o enredo é livremente inspirado no Testamento da Cigana Esmeralda, e um dos momentos do desfile estará dedicado a ideia de decifrar o mundo de sonhos, que, para ele, é uma das páginas mais interessantes da obra do Leandro Gomes de Barros.
“Se você sonhar com isso é porque vai acontecer isso, se sonhar com aquilo é porque vai acontecer determinada situação, [sonhar] com um sultão é um sonho que traz mal presságio, se sonhar com cisne é candura, com a rosa encarnada vai encontrar um amor. Acho essa uma passagem tão bonita, sobretudo, para o universo do meu trabalho e também da escola que eu represento, que é o subúrbio”, disse.
A quiromancia, a leitura da mão, totalmente identificada com a cultura cigana, também estará no desfile, como ainda a influência dos astros. Todo esse universo místico, todo esse conjunto de saberes ancestrais e super populares, estão envolvidos no desenvolvimento do enredo”, completou.
A Imperatriz continua este ano pela segunda vez consecutiva com a disputa de samba enredo aberta a todos os compositores interessados, mesmo que sejam de outras escolas ou ainda filiados a entidades musicais. O esquema de tira dúvidas, adotado pelas escolas para esclarecer aspectos do enredo com o carnavalesco, ocorreu em junho. As entregas das composições na quadra serão em agosto e a seleção começa em setembro.
A equipe de carnaval está no meio do processo de desmonte das alegorias do ano passado e Leandro está desenhando os figurinos. “A nossa expectativa é começar o processo de ferragens [para a montagem dos carros alegóricos] na segunda quinzena de julho”, informou.
Unidos da Tijuca
Carnavalesco da Unidos da Tijuca, Alexandre Louzada – Foto Divulgação
Quem gosta de fábulas, mistérios e lendas populares, certamente vai se envolver com o desfile da Unidos da Tijuca no próximo carnaval. A azul pavão e amarelo-ouro da zona norte do Rio de Janeiro conta com o enredo O Conto de Fados para encantar a Sapucaí e garantir o título, que não conquista desde 2014.
O tema propõe uma viagem a Portugal para mostrar diversos aspectos da história do país. Começa que o nome do país, seguindo a mitologia grega, era Ofiussa, a Terra de Serpentes. “A gente vai contar a história de Portugal, antes mesmo de [o nome] Portugal existir, mas baseada na tradução literal de Fado, que além de ser um gênero musical lusitano, significa destino. Então, vamos contar o destino de Portugal através de sua mitologia, das suas lendas e histórias que ainda não foram contadas. Não é o Portugal que as pessoas possam imaginar com o que já foi falado e mostrado. É mais baseado nas lendas”, explicou o carnavalesco Alexandre Louzada à Agência Brasil.
Conforme a lenda, segundo Louzada, uma rainha que era metade mulher, metade serpente, morava em Ofiussa, península mitológica que Ulisses queria desbravar antes de voltar da Odisseia. Ainda na lenda, a rainha se apaixonou pelo herói grego e ergueu uma cidade em homenagem a ele, que inicialmente se chamou Olissippo, depois Olisipo. Com o passar do tempo em uma corruptela da palavra se tornou Lisboa, atualmente a capital de Portugal.
“Na lenda, as sete colinas que circundam a cidade de Lisboa foram formadas pela ira dela desse amor que sentiu pelo guerreiro e não foi correspondida, porque ele abandona ela e vai embora”, disse o carnavalesco, acrescentando que tudo isso é contado no enredo por meio da mitologia.
Mais adiante no tempo, com os movimentos de migração de celtas e vikings começaram a surgir vários povoados e, de acordo com o carnavalesco, o território passou a ser cheio de magia. O enredo vai mostrar as influências do domínio romano e na sequência dos mouros na cultura, nas artes, na ciência e na arquitetura local.
Uma das influências da época, os azulejos são até hoje uma das características do país. Conhecido anteriormente por Condado Portucalense, após a reconquista cristã da Península Ibérica, passou a ter a denominação de Reino de Portugal.
Fazia tempo que o enredo já estava na cabeça do carnavalesco por achar que a história era bem o estilo da Tijuca, caso um dia fosse responsável pelo carnaval da escola. “Não é uma visão romântica de Portugal. Na verdade é uma grande história que se está contando através das lendas e dos mitos. Para tudo em Portugal existe uma história, até mesmo os doces portugueses. Pouca gente sabe que os doces eram chamados de conventuais porque nasceram dentro dos conventos. As freiras utilizavam a clara de ovo para engomar o hábito e com as gemas passaram a produzir doces”, explicou.
As revelações não param. Segundo Louzada, a flor que simboliza Portugal é a alfazema, mas depois o cravo vermelho passou a ser emblemático com a revolução do dia 25 de abril de 1974. Os grandes escritores como José Saramago e Fernando Pessoa e a cantora Amália Rodrigues também serão lembrados. “Todas aquelas pessoas que mostraram a alma portuguesa para o mundo”.
Para demonstrar a devoção dos portugueses, a ligação do país com o catolicismo será representada pelos santos como Nossa Senhora de Fátima, que arrasta milhões de peregrinos do mundo inteiro para a sua basílica, onde teria ocorrido a sua aparição. “Implicitamente ela representa o amor de mãe e a gente pede a proteção dela à Tijuca que está homenageando a terra onde apareceu”, relatou, acrescentando que galo de Barcelos, um dos símbolos do país, também tem origem católica, por ser baseado em um milagre que teria ocorrido para provar a inocência de um peregrino apontado de um crime.
Será na parte das grandes navegações que a Tijuca terá um momento crítico, quando são exaltadas e questionadas por poemas de Camões, apontando que elas trariam a degradação de uma terra e a escravidão de um povo, toda a dor que isso causaria por ganância. “A gente quando aborda as grandes navegações não é enaltecendo simplesmente Portugal. É mostrando os dois lados da moeda. Essa história precisa ser reescrita e reinventada, por toda a devastação que uma invasão proporciona à terra”, disse.
Recepção A forma como foi recebido na escola, leva Louzada, que estava na Beija-Flor, a ter muita expectativa para o carnaval. “Eu quero sinceramente devolver a alegria à comunidade do Borel [morro onde originalmente havia a sede da escola], resgatar a minha satisfação como carnavalesco com aquilo que posso fazer e com o apoio que estou tendo aqui. Não me foi cobrado o campeonato, mas lógico que isso não sai da minha cabeça. Estou com carnaval para isso. Só espero acontecer”, afirmou.
Quanto ao samba, Louzada prefere esperar a fase de apresentações dos concorrentes na quadra, que começa em 3 de agosto, para avaliar. “Isso acontece em várias escolas e a Tijuca não é diferente, os sambas se modificam muito quando vão para a quadra, mas grandes parcerias estão na Tijuca e espero que o samba vencedor vá se mostrando aos poucos na preferência da comunidade”.
Viradouro
Desfile da Viradouro – Foto : Tomaz Silva/Agência Brasil
Em 2024, a Unidos do Viradouro vai levar para o Sambódromo o enredo Arroboboi, Dangbé. “Um facho sinuoso desliza sobre o chão, chacoalha as folhas, estremece a terra e borbulha as águas. É Dangbé, o vodum da proteção, do equilíbrio e do movimento. Nele, nada principia nem finda, tudo avança, tudo retorna. É o constante rodopio do universo, o círculo fechado, sentido materializado pela imagem da cobra engolindo a própria cauda”, destaca o texto.
Em outro trecho informa que “A manutenção das crenças dos povos da região da Costa da Mina vive na perseverança das sacerdotisas voduns, mulheres escolhidas e iniciadas em ritos de louvor à serpente sagrada, cujas trajetórias místicas se entrelaçam em combates épicos, camuflagens táticas e resiliência vital”.
O carnavalesco Tarcísio Zanon, autor do enredo, disse que a ideia surgiu enquanto fazia ainda as pesquisas para Rosa Maria Egipcíaca, o tema do carnaval de 2023. Contou que durante o processo do ano passado, conheceu o escritor mineiro Moacir Maia, que lançou um livro sobre as sacerdotisas voduns. “A partir daí comecei a pesquisar mais sobre o vodum e Dangbé, essa divindade ofídica, a figura da serpente que foi divinizada no reino de Uidá e que até hoje tem um templo em devoção a ela. Durante a pesquisa fui descobrindo mais coisas de como essa divindade e esse culto chegaram ao Brasil”, disse à Agência Brasil.
“É o primeiro enredo que faço completamente afro. Boa parte dele passa-se em África, na região onde era o Reino de Daomé. Tem toda uma veia mística, religiosa, de um culto pouco difundido. Todos esses mistérios eu gosto muito de trazer à tona para o grande público. Tem essa veia mística que eu gosto e a Viradouro se identifica muito”, disse.
Zanon destacou ainda que o enredo tem um protagonismo feminino uma vez que a energia perpassa por corpos femininos e chega ao Brasil por meio de Ludovina Pessoa, que veio ao Brasil com a missão de perpetuar os cultos voduns no país. O texto que apresenta o enredo diz que Ludovina “tornou-se o pilar de terreiros consagrados aos voduns, entre eles o Seja Hundé, na cidade de Cachoeira, no Recôncavo baiano, e o Terreiro de Bogum, erguido no coração de Salvador”.
“Até hoje existem as sacerdotisas voduns que protegem e são protegidas pela energia de Dangbé”, disse Zanon.
Para o carnavalesco, uma das motivações de desenvolver este enredo é desmistificar o tema. “Uma vez que a gente tem uma demonização das religiões afro, e principalmente o vodum, que foi tão mal divulgado ao longo do tempo, e as pessoas têm uma ideia de que o vodum é dos bonequinhos espetados, na verdade não é nada disso. Na verdade, a palavra vodum significa na língua originária ‘vovodum, tudo de bom para você’, então, é um conjunto de magias utilizado para fazer o bem às pessoas, para a cura, para adivinhações, de projeções de futuro e um culto de respeito à natureza. A ideia de trazer este enredo, também é de desmistificar e dialogar sobre o racismo religioso que ainda existe tão forte ainda no Brasil e trazer um culto tão pouco difundido no Brasil”, explicou.
O carnavalesco lembrou que a comunidade estava ansiosa por ter um enredo afro na sequência da Rosa Maria Egipcíaca que foi muito elogiado pela maneira como se desenvolveu na avenida. “Já era um desejo da comunidade de ter um enredo afro, e mais que isso, a Viradouro tem tido enredos que trazem informações, conceitos e histórias novos. Isso tem levado a comunidade a gostar desse tipo de enredo e estudar mais. Tenho sentido que estão bem felizes com essa temática”.
Ele citou a mensagem de um componente da escola com o lançamento do enredo. “Tarcísio me fazendo ler mais do que na época que eu estudava. Achei isso ótimo. Essa é nossa missão também, de trazer leitura, conhecimento, cultura”.
Samba De acordo com Zanon, os compositores que estão criando os sambas para participarem da seleção entenderam bem a mensagem do enredo. “É um enredo que nasce de uma forma intuitiva, mas que fala de uma divindade que é divinizada a partir de uma vitória na guerra. Todo tempo a gente tem esse espírito aguerrido da serpente sagrada, como o espírito dessas mulheres para proteger o culto delas. A gente sente que virá um samba forte, místico, com essa força africana”, disse, acrescentando que 80% do projeto do carnaval 2024 estão prontos no papel, as alegorias de 2023 já foram desmontadas e começou a montagem das ferragens das alegorias para o próximo desfile.