Chavoso da USP e Funkeiros Cults criticam elitismo e socializam conhecimento

Diário Carioca

Entre os cerca de quatro mil quilômetros de Manaus a São Paulo, a distância separa o manauara Dayrel de Azevedo, dono da página Funkeiros Cults no Instagram, de Thiago Torres, criador do canal do Youtube Chavoso da USP, ambos com 21 anos.

As realidades dos dois, no entanto, são próximas quando o assunto é acesso ao conhecimento por parte de cidadãos pobres e que vivem nas periferias das cidades. 

Dayrel de Azevedo, morador de um dos bairros mais perigosos de Manaus, trabalhou por dois anos em uma universidade particular do município, mas não pôde se sentar ali como universitário.

Transitando entre os dois mundos diametralmente opostos diariamente, Azevedo passou a perceber de forma acentuada as diferenças que os separam.

“O tratamento para gente da periferia é como se fosse ignorante, está ligado? Até com a gente mesmo. A gente mesmo pensa isso da gente. Como se a gente fosse burro e desprovido de cultura.”

A separação entre os dois mundos no mesmo ambiente levou Azevedo a criar a página Funkeiros Cults, com o objetivo tanto de desconstruir o estereótipo marcado acima quanto de deixar às claras que, mais do que possível, é direito de qualquer um estudar e se interessar pelo conhecimento.

“Eu me vesti da forma como eu vou para o bailão e peguei meu livro favorito, que na época era Metamorfose [Franz Kafka]. E aí virou. (…) Eu conhecia muita gente que fazia conteúdo para internet, mas pouca gente que eu acompanhava era de periferia. Tinha essa necessidade. Aí eu me vi querendo fazer”, afirma Azevedo.

A página reúne imagens de jovens lendo livros clássicos com frases de humor. Em uma das imagens, um jovem segura o livro O Mito de Sísifo, de Albert Camus, com a frase: “Todo Sísifo é um servente de pedreiro da quebrada, slc”.

Em outra publicação, o livro Totem e Tabu, de Sigmund Freud, é associado à frase: “Oxe, então quer dizer que eu só escolho as bandidas que é parecida com a minha coroa”.

Ainda em outro post, a lição do livro O príncipe, de Maquiavel, é: “Para bem conhecer o caráter da quebrada, é preciso ser cria, e para bem conhecer o do cria, é preciso entender a quebrada”.

O jovem relata que escolheu esse tipo de conteúdo, veicular informações por meio de memes nas redes sociais, por acreditar ser o que mais chega para todas as pessoas.

“Eu queria ser mano que falava mais sério, que vinha com um papo mais sério, apontar mesmo o dedo na ferida, mas eu sei que eu não ia atingir muita gente com essa parada. Por isso que eu decidi voltar para o humor, consigo passar uma mensagem para as pessoas”, afirma Azevedo. 

O manauara também relata que, a todo momento, escuta que “funkeiro é burro e ignorante, aí vê ali um funkeiro lendo, o que as pessoas achavam que era impossível… E eu queria mostrar que essa parada está errada”. 

“Eu fui um moleque que trabalhou dois anos em uma universidade e não pude estudar lá. Estudei a minha vida toda em escola pública. Sou mais um moleque da periferia que utiliza do SUS, que se formou em escola pública. Sou mais um moleque da periferia, sempre gosto de ressaltar isso.” 

:: MC Fioti une funk e ciência para estimular a vacinação na pandemia ::

Do outro lado do Brasil, Thiago Torres sentiu o mesmo peso dos estereótipos depositados em quem é de periferia ao se tornar um estudante da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da Universidade de São Paulo (USP), a partir de 2018. 

O jovem, que nasceu e cresceu na Brasilândia, no extremo norte da capital paulista e, assim como Dayrel Azevedo, estudou a vida toda na rede pública de ensino, também se viu diante de uma rachadura ao transitar todos os dias entre o extremo norte de São Paulo e a universidade.

Torres se considera uma pessoa comum que, “por alguns acidentes sociais do destino” conseguiu entrar na  Universidade de São Paulo (USP). “Isso mudou drasticamente a minha vida, a minha mentalidade”, conta.

“Mas eu sempre vivi nesse dilema de estar transitando entre dois mundos diariamente, daquele espaço de privilégio, conhecimento, cheio de pessoas ditas importantes, de famílias importantes, e voltar para a minha quebrada onde as pessoas são trabalhadores”.

Ele lamenta que essas pessoas que vão ao centro para trabalhar, “para manter essa cidade de pé”, estejam “apagadas”.

“Não têm autoestima, não acham que são alguém na vida, ou que podem ser, que não puderam estudar, que sofrem uma violência constante de todos os lados”, ressalta.

O trânsito entre os dois espaços fez Torres perceber a importância de ter referências de pessoas de periferias dentro da universidade, a fim de incentivar jovens de sua realidade a entrar em faculdades e acessar outros modelos de conhecimento.

:: “Bum Bum Tam Tam” é mais complexo que Bach, afirma pesquisador musical ::

Com base nas mesmas “discrepâncias” que levaram Dayrel Azevedo a criar a página Funkeiros Cults, Thiago Torres criou o canal de Youtube Chavoso da USP, como é mais conhecido. 

“Como é importante ter pessoas nas quebradas que sejam incentivos para outras, no sentido do estudo, da participação política, porque eu tive pessoas que me incentivaram a estudar, mas não conhecia ninguém que estudava na USP ou engajado politicamente”, afirma Torres.

Em seu canal, ele fala desde a vivência da universidade, ou seja, como é para um jovem de uma periferia de São Paulo e negro estar no ambiente universitário, e todos os efeitos que isso gera.

O objetivo é atingir, principalmente, as pessoas periféricas, sejam estudantes do ensino superior ou não, tanto para aqueles que “estão se sentindo do mesmo jeito que eu, não acolhido nesse espaço hostil” quanto para as “pessoas periféricas que querem entrar na universidade e passaram a me ver como uma referência”.

:: O recado do funk ao bolsonarismo: “A massa funkeira não vai deixar de ir ao baile” ::

Decidiu, então, fazer isso da forma mais atrativa possível. “Tem vídeos meus, por exemplo, falando sobre funk e trazendo um monte de conceitos e estudos sociológicos”, afirma Torres, que também diz se preocupar com a linguagem utilizada.

“Eu penso na linguagem que eu uso. Não vou usar aquela linguagem que os meus professores têm na universidade. Aquela linguagem toda rebuscada, cheia de conceitos difíceis. Não tem tanta necessidade”, afirma Torres.

Dados mostram realidades distantes

Os dados reforçam as narrativas e experiências apresentadas por Dayrel Azevedo e Thiago Torres, com relação ao acesso de pessoas negras e pobres ao conhecimento.

Os números mostram que apenas 15,8% do total de mestres e doutores das universidades federais são pretos e pardos, segundo uma pesquisa de 2019 do Censo do Ensino Superior do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep).

Um estudo da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (Pnad Contínua), de 2017, do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), mostrou que 22,9% da população branca brasileira com mais de 25 anos tinham curso superior completo.

Entre os negros, a porcentagem cai para 9,3%. Na mesma linha, um estudo do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), de agosto de 2020, revela que dos jovens e adultos entre 18 e 24 anos que estão na universidade, 36% são brancos, enquanto 18% são negros.

Apesar de entre 2010 e 2019, o número de pretos no ensino superior ter aumentando quase 400%, representando 38,15% dos universitários, a taxa ainda está aquém de sua representatividade no conjunto da população, de 56%, segundo o IBGE. 

Edição: Leandro Melito


Share This Article
Follow:
Equipe de jornalistas, colaboradores e estagiários do Jornal DC - Diário Carioca