Na primeira das 28 crônicas do livro Inventário de Vagas Lembranças (Editora Penalux, 82 pág) a escritora e crítica literária Márcia Silveira (@marcia_silveira) alerta: a obra contém doses de melancolia. A honestidade escancarada da autora pode parecer acintosa num primeiro olhar desatento. No entanto, o aviso é uma prova da generosidade da escritora, que propõe tatear a memória e dar voz a dores, anseios e angústias, e assim, desnudar-se, para oferecer ao leitor um pouco de si a cada página. Na obra, Márcia traz à tona temas bastante comuns, como infância, família e luto, tratando-os de forma singular. O evento de lançamento está marcado para o próximo sábado, 28 de outubro, às 14h, no Alfa Bar e Cultura, no centro da cidade do Rio de Janeiro.
Se a melancolia revela-se prevalente neste que é o primeiro livro da autora, há uma razão de ser. A escritora perdeu a mãe recentemente e a obra reflete inevitavelmente essa morte. Para a autora, dedicar-se à escrita, rememorar infância e adolescência, era uma forma de se aproximar da própria genitora. Ainda assim, Márcia assume que mesmo antes o sentimento sempre esteve em seus escritos, mas havia temor em colocá-lo no papel: “Por algum tempo me senti paralisada na hora de escrever crônicas. Um dos motivos era achar que meus textos eram muito melancólicos.”
O talento da escritora parece justamente morar nesse paradoxo, como escavar e trazer à luz eventos tristes, refletir sobre eles mas, ao mesmo tempo, não torná-los pesados e exaustivos. A regra parece ser escrever embebida no afeto. As histórias podem conter desencantos, mas a forma como Márcia escreve evidencia as camadas de sentimentos e emoções contidos em seu modo de se apropriar do mundo e ruminar lembranças. “Apesar de minhas crônicas tratarem de experiências pessoais, um texto traz sempre a possibilidade de conexão e identificação com quem lê – e essa é uma das riquezas da literatura”, pondera.
A autora se destaca pela cadência na escrita de suas crônicas, costurando sua argumentação com coesão e coerência, selecionando as melhores palavras e inscrevendo sua sensibilidade em cada letra. Essa habilidade pode ser apreciada em especial nas seis crônicas intituladas “Efêmeras”. Nelas, expõe sentimentos e pensamentos de forma ainda mais curta, mas sem perder a magia da crônica, evidenciada pela escrita assertiva e terna. Os textos soam quase como rascunhos, lembretes, devaneios, e por isso mesmo ainda mais pessoais e reveladores.
Ainda que a escritora tenha alertado no início do livro sobre o tom cinzento que a obra pode conter, quem se aventurar pelo Inventário de Vagas Lembranças encontrará outros matizes, e por vezes, até um colorido mais chamativo. A melancolia expressa nas crônicas é contrabalanceada pelo contentamento, bom-humor e alegria que também estampam as páginas da obra. O saldo, ao final, é equilibrado e favorável a quem se dedica a desvendar o livro.
Escrever: realização do sonho da menina leitora
Aos 12 anos, Márcia Silveira sabia que queria ser escritora. Mais de duas décadas depois o desejo se materializa no lançamento do livro Inventário de Vagas Lembranças. As voltas que a vida deu até a autora concretizar o sonho da infância, no entanto, não são necessariamente motivos de pesar ou descontentamento. Ao contrário: Márcia trilhou um caminho profissional exitoso e que nunca a deixou distante do universo das artes.
A carioca é graduada em Filosofia e Design Gráfico e pós-graduada em História da Arte. Profissionalmente atuou como fotógrafa. Mais recentemente foi abrindo brechas e adentrando o mundo da escrita e revelando seu talento. Desde 2019 escreve críticas literárias no jornal Diário do Rio e em 2022 lançou a newsletter Página23.
O interesse por crônicas nasce na pré-adolescência a partir do contato com a coleção Para Gostar de Ler, da Editora Ática. Na época dizia que seria escritora por gostar do humor e da espontaneidade que aqueles textos continham. Hoje, ampliou o repertório de interesses literários. “Leio muito, mas tenho me sentido especialmente atraída por narrativas que unem biografia e ensaio, como as de Annie Ernaux e Felipe Charbel. Na área da crítica, admiro a escrita do José Castello e do Paulo Roberto Pires”, esclarece.
Ainda assim, a autora faz uma ressalva. “Acho muito emblemático que meu primeiro livro publicado seja de crônicas. É um retorno ao sonho de infância”.
Confira um trecho do livro:
Se não me lembro, a mente inventa. Era mesmo dourado o pacote de cigarros do meu pai? A casa era rosa? Minha mãe estava comigo na roda gigante? Aquela penteadeira era escura? De tanto inventar: um inventário. Minhas palavras tentam alcançar as certezas que a mente me impede de ter. Um levantamento dos bens que o tempo vive tentando me roubar. Ou uma tentativa afetiva de evitar que uma existência inteira se perca nos desvãos do cotidiana.
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