A Trajetória de Rita Lee é um legado para as próxima gerações

JR Vital
Rita Lee

A cantora Rita Lee, que faleceu na segunda-feira, 08, foi diagnosticada com câncer de pulmão em 2021 e desde então tratava da doença. A morte da cantora foi confirmada pela família nas redes sociais e após a divulgação da notícia, uma enxurrada de homenagens tomou conta do país.

Rita morreu em sua residência, em São Paulo, no final da noite de segunda-feira. “Cercada de todo amor e de sua família, como sempre desejou”, informou o comunicado da família.

A cantora viveu imensamente e deixou um legado artístico vasto e recheado de sucessos. Rita se autoproclamou “Padroeira da Liberdade” e foi uma voz a frente de seu tempo, lutando contra a opressão e defendendo os direitos das mulheres.

Para Naira Marcatto, cantora, especialista em Canção Popular, pesquisadora do campo da História da Música Popular Brasileira e professora de História da Música Brasileira na Faculdade Santa Marcelina, Rita Lee estão entre as maiores artistas do país: “Se definirmos “artista” como vendedores de discos, Rita Lee certamente está entre os maiores do tempo em que o material físico ainda era comercializado. Se por “artista” entendermos a figura que faz arte, podemos afirmar que no imenso panteão de artistas brilhantes que tivemos – e temos – durante nossa história, Rita foi uma das maiores. Ao mesmo tempo em que arte não tem mesura, Rita Lee foi imensa, é imensa. Porque sua obra vive e, viva, “faz um monte de gente feliz!”

Uma das marcas registradas de Rita Lee era a defesa da liberdade feminina, como nos versos da canção Cor de rosa choque / Todas as mulheres do mundo. Naira lembra que Rita seguiu os passos de outras vozes, como Chiquinha Gonzaga, por exemplo, na música, e mostrou que exemplos da luta feminina sempre vão existir e que a defesa dos direitos femininos não pode e nem deve se extinguir. Naira lembra também a homenagem de Rita à Leila Diniz, outra voz gigantesca na defesa das mulheres.

“Na História da Música Brasileira, muitas mulheres tomaram a frente em diferentes espaços. Desde Chiquinha Gonzaga e Tia Ciata é possível observar lideranças femininas em comportamento, agência cultural, composição, carreira internacional, estabelecimento de padrões estéticos e por aí vai. Quando Rita Lee surge no cenário musical nacional, não é de uma forma tímida, não passaria despercebida: ela é uma das personagens principais da inauguração do movimento tropicalista quando Os Mutantes defendem Domingo no Parque junto com Gil e a orquestra no Festival de 1967. E uma menina ainda. Nessa fase do cerco da censura e da revolução sexual crescendo mundo afora, Rita inventou para si um papel bastante único de agente da liberdade feminina: não somente por ser cantora e compositora, mas por dar ao rock o lugar estético e nada careta que não existia na música da Jovem Guarda. E fez tudo isso cantando a mulher, ser mulher, a liberdade de pensamento da mulher e, fundamentalmente, a sororidade. Isso foi revolucionário!
Como ela cantou sobre Leila Diniz, talvez toda mulher que fez e faz música depois dela seja “meio Rita Lee”, explica Naira.

A Mutante Rita, muito além dos Mutantes

Durante a infância, Rital Lee teve aulas de piano com a musicista clássica Magdalena Tagliaferro. Não pensava em ser cantora de rock, mas em ser atriz de cinema, veterinária ou a profissão que seu pai queria, dentista, como ele. Suas primeiras influências musicais foram Elvis Presley, Neil Sedaka, Paul Anka, Peter, Paul and Mary, Beatles, Rolling Stones e artistas brasileiros, como Cauby Peixoto, Angela Maria, Tito Madi, João Gilberto, Emilinha Borba, Carmen Miranda, Dalva de Oliveira e Maysa, os quais ouvia por influência dos pais.

Na adolescência, passou a se interessar por música, começando a compor suas primeiras canções. Junto de alguns amigos, começou a se apresentar em clubes da região como componente do Tulio’s Trio. Em 1963, formou um conjunto musical com mais duas garotas, as Teenage Singers, que faziam pequenos shows em festas colegiais. No ano seguinte, elas conheceram o trio masculino Wooden Faces. Nesse mesmo ano, faz sua primeira gravação, fazendo vocais para um álbum de Prini Lorez. Teenage Singers e Wooden Faces juntaram-se, formando o Six Sided Rockers, banda que depois passou a se chamar Os Seis, e chegou a gravar um disco compacto, com duas músicas.

Com a saída de três componentes, sobraram Rita e os irmãos Arnaldo e Sérgio Dias Baptista. O trio passa a se chamar Os Bruxos. Entretanto, nem Rita, nem Arnaldo, nem Sérgio estavam satisfeitos com esse nome e queriam mudá-lo, antes da apresentação do grupo, na estréia do programa O Pequeno Mundo de Ronnie Von, da TV Record (1966). Segundo Carlos Calado, a ideia do nome “Os Mutantes” veio de uma brincadeira irônica de Alberto Helena Júnior, produtor do programa, com Ronnie Von, que, na época, andava lendo O Império dos Mutantes, de Stefan Wul, e não falava de outro assunto. “Vocês ainda estão procurando um nome para o conjunto dos meninos? Por que não Os Mutantes?” Ronnie Von gostou da ideia de Alberto Helena e levou-a ao grupo, que a aprovou imediatamente

O sucesso dos Mutantes foi estrondoso. Rita e Arnaldo acabaram se casando e tempos depois veio a separação, que culminou com a expulsão de Rita Lee da banda, sob a alegação de deficiência técnica instrumental. A os irmãos Baptista alegaram que Rita não tinha virtuosismo suficiente para ser integrante do grupo. Ao contrário de muitos artistas que acabaram tendo suas carreira sepultadas após serem desligados de seus grupos, Rita virou um fenômeno ainda maior e entrou para o hall dos maiores nome da música brasileira. Para Naira a expulsão tinha outros motivos e o sepultamento da carreira dificilmente teria qualquer chance com Rita Lee, uma vez que o mercado já a havia adotado como potência.

“Não aconteceria esse sepultamento da carreira, esse é um mito muito alardeado. Andre Midani, um dos grandes responsáveis pela produção de música brasileira e diretor artístico de uma das maiores gravadoras do país, enxergava na Rita aquilo que ela era mesmo, essa artista toda. Antes de “ser expulsa” da banda, Rita já tinha gravado seu primeiro disco solo e, de uma forma menos experimental, é quase que imediatamente depois dessa expulsão que o primeiro disco do Tutti Frutti é lançado. Ela vai direto para o gosto de público e crítica e passa a atuar nessa banda mais como cantora e compositora. Mas ainda tem uma outra história: essa expulsão acontece imediatamente após o término do relacionamento entre ela e Arnaldo Baptista. Não seria esse “virtuosismo” uma desculpa? Não sabemos e dificilmente saberemos”, analisa Naira, que continua: “Além disso, temos que considerar esse lugar de virtuose: Rita Lee nunca se propôs a isso, não como instrumentista. Muito embora tenha tido a guitarra como seu instrumento principal e vá crescendo como instrumentista ao longo de sua carreira, seu virtuosismo sempre residiu no canto e na composição. E nessa área, não me canso de repetir, ela foi rara, brilhante. E assim mudou a história da música.”

A “Padroeira da Liberdade” e a ‘Pimentinha” faziam os Caretas Arder

Rita Lee foi uma grande revolucionária, encarou o preconceito, a ditadura e o machismo. Como todas as vozes que se erguem contra opressores, acabou perseguida. A cantora foi presa em 1976, mas não por conta de sua luta contra a ditadura, mas por um flagrante, que segundo ela foi plantado pela polícia, de maconha em seu apartamento. Na ocasião Rita estava grávida e acabou 45 dias na prisão. Elis Regina, outra estrela da música nacional, passou a lhe visitar no cárcere e exigiu que Rita tivesse o acompanhamento de um médico por conta de sua gestação. As duas firmaram um grande amizade que rendeu exclente frutos musicais, como comenta a professora Naira.

“Sempre me lembro da história do início da amizade dela com Elis. Rita foi presa enquanto estava grávida por porte de drogas, um lance um pouco mal explicado pela história. Ficou presa por duas semanas. Elis e ela não se conheciam exatamente, não tinham um relacionamento. Quando soube da prisão de Rita grávida, Elis foi até a delegacia com um de seus filhos e, proibida de visitar Rita Lee, ameaçou chamar a imprensa e dar uma coletiva ali mesmo, denunciando os desmandos do delegado. Então, a visita foi permitida.
Daí nasceu a amizade e a cumplicidade entre elas e Doce de Pimenta, música que Rita fez para Elis. E sempre me pergunto se essa cumplicidade entre duas mulheres tão potentes não nasceu também porque Rita foi a primeira a gritar que mulheres se unissem”, conta Naira.

Santa Rita de Sampa deixa uma lacuna e uma obra imortal

Rita Lee nos deixou, mas seu trabalho seguirá como material de estudo para múltiplas gerações que virão. Com sua música, rebeldia, humor e irreverência, a cantora deixa um legado extraordinário, tanto musical como comportamental.

A cantor alcançou a marca de 55 milhões de discos vendidos, sendo a quarta artista mais bem-sucedida neste sentido no Brasil, atrás de Tonico & Tinoco, Roberto Carlos e Nelson Gonçalves. Ela construiu uma carreira que começou com o rock mas que ao longo dos anos flertou com diversos gêneros, como a psicodelia durante a era do tropicalismo, o pop rock, disco, new wave, a MPB, bossa nova e eletrônica, criando um hibridismo pioneiro entre gêneros internacionais e nacionais.

Suas músicas não eram apenas letras muito bem elaboradas com sacadas geniais, tinham riffs e desenhos marcantes, tinham identidade harmônica, na qual ao primeiro acorde você já reconhecia seu sinal. Vocalista potente, Rita entoava seus versos, que geralmente eram compostos de forma rápida e como ela gostava de dizer “saiam da alma”, de uma maneira única. Naira fala sobre a obra da cantora e o que Rita nos deixa como herança.

“Rita não foi só a “Rainha do Rock”. Foi a personificação do rock no Brasil, ensinou todo mundo que veio depois como fazer. Além disso, foi Rita uma das maiores e melhores compositoras de canção da nossa história e, é bom que se diga, com homens inclusos nessa lista. Essa obra vasta saiu do mercado e entrou para a nossa cultura porque Rita Lee faz parte da gente e não só da gente. Ela é uma das artistas mais celebradas pela classe musical no exterior, ainda que exista a barreira do idioma para o entendimento dos textos de suas canções”, diz Naira, antes de finalizar: “E cultura é isso: quando é parte inconteste da nossa gente, é cultura. Rita é cultura nossa. E cultura faz a história!”

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Por JR Vital
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JR Vital é jornalista e editor do Diário Carioca. Formado no Rio de Janeiro, pela faculdade de jornalismo Pinheiro Guimarães, atua desde 2007, tendo passado por grandes redações.