Criolo não para de crescer, como influência, como artista e como compositor. em seu novo disco, “Sobre Viver’, o rapper ressurge mais instigante e visceral que nunca.
As letras, as melodias e harmonias são de um trabalho que marca a maturidade de um artista inquieto e questionador, que entendeu seu papel na sociedade e aborda temas que incomodam chocam e rotineiramente são jogados para debaixo do tapete.
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Com se já não bastasse o trabalho de Criolo ser bom para cacete, o jornalista, produtor musical e diretor de arte, Marcus Preto fez uma bela resenha sobre o álbum no qual disseca a obra de Criolo, confira abaixo:
CRIOLO – Sobre Viver
“Sobre Viver” nasce com a amplidão de um clássico. Não por ser um álbum que remeta a tempos passados e estabelecidos, onde habitam todos os clássicos que conhecemos. Menos ainda por mirar a eternidade do futuro, do que será. Não. “Sobre Viver” nasce com essa dimensão de perenidade justamente por ser um retrato do autor e do mundo que o rodeia ostensivamente amarrado ao presente, ao hoje, ao já. Logo em uma primeira audição, é possível identificar o novo álbum de Criolo como o terceiro capítulo da trilogia aberta no – esse sim – já clássico “Nó na Orelha” (2011) e seguida no posterior “Convoque Seu Buda” (2014). Tão grandioso quanto seus antecessores, “Sobre Viver” chega às plataformas de música em 5 de maio com o mesmo dom para fazer pontes, estabelecer encontros e propor diálogos entre o universo do rap e tantas outras quebradas da música do Brasil e do mundo. Abraça tanto o Cabo Verde de Mayra Andrade quanto as Minas Gerais de Milton Nascimento, tanto a nobreza erudita do maestro Jaques Morelenbaum quanto a potência do ultra talentoso MC Hariel, a intensidade da diva soul Liniker e o equilíbrio da poeta Maria Vilani, mãe de Criolo. O rap é o princípio de tudo e é ele quem dá a caneta nas dez canções do álbum, mas o som e a musicalidade se desdobram em múltiplas referências, seguindo a vocação dos trabalhos que colocaram Criolo no centro do mapa da música brasileira produzida neste século.
“Sobre Viver” começou a ser esboçado há pouco mais de um ano e, por razões autoexplicativas, se chamaria “Diário do Kaos” (com K, de Kleber). Era a reação de Criolo ao Brasil da pandemia e ao emaranhado de tristeza e ódio em que nos enrolamos, à nossa revelia, nesse período sórdido. O mesmo impulso já havia dado forma ao single “Cleane” (2021), dedicado à irmã de Criolo, Cleane Gomes, vítima fatal da covid-19 aos 39 anos. Não por acaso, ela também é personagem de “Pequenina”, faixa mais autobiográfica de “Sobre Viver”, escrita para a mãe de ambos. “Vocês votaram na morte”, ele rima no monumental “Sétimo Templário”, uma das faixas centrais na construção narrativa do álbum. O racismo é exposto o tempo todo e sob diversos ângulos. “Pretos Ganhando Dinheiro Incomoda Demais” diz a que veio já no título-slogan – e Criolo quis que fosse assim sempre, a mensagem às claras e na cara. “Ogum Ogum” aborda o tema pelo viés da intolerância com religiões de matrizes africanas, o mesmo racismo religioso que serve de pano de fundo para “Yemanjá Chegou”. Os temas são reiterados e expandidos o tempo todo, a cada faixa, o que fortalece o roteiro e solidifica o discurso. O reggae “Moleques São Meninos, Crianças São Também” diz da infância na periferia, “onde o estado não chega, a maldade traça o norte”. E, transformando o caos em sobrevivência, a blues-balada “Diário do Kaos” aponta a libertação por meio da arte, da educação, da música: “Meu rap vai me levar aos confins do mundo pra dizer que só o amor pode te afastar do canhão de um 12, de um tiro, de uma arma, de uma desilusão”. “Aqui quem fala é um sobrevivente”, ele canta com a garganta sufocada. A poesia concentrada nos trinta e tantos minutos de “Sobre Viver” se desenrola em camadas e camadas (leia o faixa-a-faixa escrito pelo próprio Criolo), fazendo deste álbum um dos mais contundentes documentos artísticos do nosso tempo no nosso lugar.
Musicalmente, Criolo usa o álbum para expandir a equipe de produção em núcleos. Daniel Ganjaman, que formatou a sonoridade de Criolo nos trabalhos anteriores, segue no time. Ele está nas faixas “Ogum Ogum” e “Aprendendo a Sobreviver”. “Ogum Ogum” também tem as mãos de outro nome fundamental na trajetória de Criolo, Marcelo Cabral, que dividiu com Ganjaman a produção de “Nó na Orelha” (2011), “Convoque seu Buda” (2014) e “Espiral de Ilusão” (2017). O próprio Criolo bota a mão na massa em dois momentos: “Me Corte na Boca do Céu a Morte Não Pede Perdão” e “Pequenina”.São essas as faixas, aliás, que concentram as participações especiais – Milton Nascimento na primeira; Maria Vilani, MC Hariel, Liniker e Jaques Morelenbaum na segunda. Mas a maior parte das músicas ficou sob os cuidados do duo Tropkillaz, formado pelos brasileiros Zegon e Laudz. Isso porque o processo de criação de “Sobre Viver” partiu do encontro de Criolo com os dois produtores, com quem já havia trabalhado nos singles “Sistema Obtuso” (2020) e “Cleane”.
Como vinha de uma série de cinco singles com videoclipes cinematográficos (“Etérea”, por exemplo, passou em quase 50 festivais pelo mundo), toda a parte visual de “Sobre Viver” se pauta pelo minimalismo. Por ora, nenhuma faixa do novo trabalho vai ser desdobrada em clipe. É uma maneira de inverter a lógica e dar maior ênfase à música e às inúmeras interpretações que dela podem provir, nas cabeças dos ouvintes, sem a “viagem guiada” do audiovisual, que acaba levando o espectador por um caminho definido. Em vez de mil imagens, cada faixa do novo álbum foi vinculada a apenas uma cor. Para chegar aos tons ideais, o diretor criativo Tino Monetti fez uma pesquisa sobre a história das cores, seus significados em diferentes tempos, sociedades, contextos culturais e momentos históricos. Criolo rebatizou todas elas, dando um sobrenome conforme o universo da respectiva canção. “Pretos Ganhando Dinheiro Incomoda Demais” é verde grana; “Moleques São Meninos Crianças, São Também” é rosa criança; “Yemanjá Chegou” é azul sereno etc. A direção de arte é de Pedro Inoue. A foto da capa é assinada por Helder Fruteira, com direção de arte de Alma Negrot. A direção geral segue nas mãos de Beatriz Berjeaut.
Assim se dá o diário do caos de Criolo, transformado pela caminhada em um ensaio ultracolorido sobre a sobrevivência. Na maior parte do tempo, em cor de vermelho sangue, é verdade. Mas ele não nos deixa esquecer: sangue também é a cor da vida.
MARCUS PRETO
Maio de 2022
Faixa a Faixa, por Criolo
Diário do Kaos (feat. Tropkillaz)
“Diário do Kaos” fala sobre o que nasce de uma sociedade desigual. O que é o fruto da desigualdade? É o medo, é a desesperança, é você achar que tudo está perdido. É você não ver sentido na vida, é você aceitar a ideia do imediatismo, que você tem que ter tudo agora, porque, se não, você não é respeitado. E cada um vai achar seu caminho para isso. Uns podem achar prosperidade e outros podem achar a morte. A música também fala da importância do rap nas nossas vidas. Tem outros temas, mas não quero falar, porque essas ideias só se completam quando chegam no coração de cada pessoa. Cada pessoa vai mandar pra nós o que é essa música. A música está sempre incompleta, ela só se completa quando chega no coração do outro.
Pretos Ganhando Dinheiro Incomoda Demais
O DanDan sempre faz essa reflexão: como é que você luta para ser aceito num mundo que sempre vai te rejeitar? É sem fim essa guerra. Por isso que falo: “Eu vou ganhar dinheiro, mãe, porque é só assim que eles respeitam a gente.” Mas pensar assim não é vitória do sistema? Mas eu vim do bairro que depende do Bom Prato, irmão. E os que nem o Bom Prato tem? Então, todo dia é vitória do sistema. A diferença é que, para vocês, nós temos que ficar só onde nós ficamos. E aí, conversa com a “Pretos Ganhando Dinheiro Incomoda Demais”. Eu poderia dar outro nome para a canção, mas eu faço questão do título ser o bagulho central, para quando estiver numa rádio, na televisão, a pessoa falar o nome da música. Então, mesmo sem ouvir, o nome da música já abre o debate.
A gente estava assistindo ao Super Bowl e eu vi a apresentação do The Weeknd. E ele fez uma roupagem do disco novo dele todo anos 80, tudo que a gente curtiu desde moleque e isso também é nosso. Então, tá todo mundo conversando. Quando o Tropkillaz trouxe um synth oitentista e a gente usou o kit de bateria da época também, eu disse: É, somos isso aí também, mano.
Moleques São Meninos, Crianças São Também (feat. Tropkillaz)
Esse som, eu tinha pensado que seria um Lo-fi, e acabou que o Tropkillaz fez uma mágica, transformou a música numa outra coisa e trouxe muita força. O refrão apresenta esta ideia: “Moleques são meninos, crianças são também, nascer para ser tratado bem.” Porque, infelizmente, filho de rico é tratado como criança, filho de pobre é tratado como lixo. É sobre como a crueldade vai visitando cada vez mais cedo nossas crianças, como nós vamos perdendo a juventude do país. É sobre como morre a infância no Brasil por causa do descaso social, do abandono, onde se tem soldados do medo.
Ogum Ogum (feat. Mayra Andrade)
Tem uma prece também, um pedido de licença, um pedido de bênção. Um relembrar a fé, relembrar a força da fé do povo brasileiro que está em “Ogum Ogum”, com participação da Mayra Andrade. Ela trouxe uma energia espiritual muito linda, muito forte para a música. A gente se falou poucas vezes na vida, mas sempre foi muito incrível. A gente teve uma reaproximação recente, por causa do trabalho, a canção já estava se encaminhando e veio a ideia de apresentar para ela. Ela gostou muito da música e colou junto, deixou a energia maravilhosa dela lá.
Essa música é uma prece e um grito de desabafo. É um chamado de atenção para temas que as pessoas só falam quando está na moda ou quando convém falar. Que é a perseguição que acontece no Brasil, as mortes que acontecem por causa da perseguição religiosa. As religiões de matriz africana estão sendo perseguidas, as pessoas estão sendo assassinadas, suas casas de oração e de obras sociais estão sendo demolidas e ninguém fala nada. Aliás, todas as questões raciais, quando tem um outro interesse, o pessoal gosta de falar para fortalecer a caminhada deles, e depois esquecem.
“Ogum Ogum” fala da fé do nosso povo, da beleza, da cultura, das religiões de matriz africana e todos os seus porquês. Fala de tudo aquilo que traz de resgate da nossa ancestralidade, mas também fala da perseguição que acontece e que poucos falam.
Sétimo Templário (feat. Tropkillaz)
“Sétimo Templário” fala de uma ordem antiga, não dos templários, mais antiga, que talvez antecede todo o pensamento de usar poder político para devastar territórios. É sobre como ainda hoje, no mundo contemporâneo ultra pós-moderno, temos linhas muito antigas de como lidar com civilizações ao redor do mundo, sendo apenas títeres. Os que estão aí são apenas títeres, bonecos nas mãos de outras pessoas que falam como o planeta tem que estar. Muito se apresenta sobre as peças do tabuleiro, mas ninguém vai saber quem é o dono ou quem inventou do tabuleiro desse jogo. Então, tem muito do porquê de mudar a frequência global. Onde esses extremos nos levam? E por que toda essa massa humana se encontra em desengano? Como usufruir disso, do medo? O medo é a ferramenta fundamental de várias coisas que regem o planeta. Vai para além do texto escrito. E quem está aí, está porque tem que estar, mas não é tudo isso. É apenas um boneco sendo utilizado por uma força muito maior.
Me Corte Na Boca do Céu A Morte Não Pede Perdão (feat. Milton Nascimento)
Essa música vinha na minha cabeça de um jeito que resultou nessa produção que deságua muito perto da pedra fundamental de como a canção nasceu. E, mais uma vez, trabalhei rodeado de grandes músicos, que fizeram arranjos incríveis, além desse dia a dia de trabalho com o Tropkillaz também, que deram suporte para isso acontecer. A honra máxima para qualquer artista no planeta é ter uma poesia sua, um texto seu sendo interpretado pelo Bituca. E isso acontece nesse disco, porque acontece na nossa vida. A gente se conheceu em 2013 e não se desgrudou mais. Essa letra é muito forte “Me corte na boca do céu, a morte não pede perdão. É o tambor desse destino oblíquo na palma da mão” É o tambor onde você põe as balas, talvez. É o tambor da arma, que faz com que sua vida fique pequena ou que você abrevie seu tempo, sua passagem neste plano terreno.
“Eu ouvi a música agora, gostei muito e quero gravar. Um beijão.” – Milton Nascimento em áudio enviado para Criolo.
“É o maior de todos, mano. Ele faz uma coisa dessa, ele dá um presente que não é só meu, é de todo mundo que acredita em mim. É um presente para todas as pessoas envolvidas desde sempre, desde que eu pedi para cantar numa festa de doação de roupa e comida, até hoje, agora, falando desse álbum maravilhoso chamado ‘Sobre Viver’. É um presente para todos nós, para o rap nacional, para quem desacreditou do rap nacional.” – Criolo reagindo à participação de Milton Nascimento no álbum.
Yemanjá Chegou
E mais uma vez a gente recorre a nossa fé, exalta o que a gente tem de lindo, essa beleza que se expressa em fraternidade, calor humano, num sorriso no meio do caos, alguém estendendo a mão. Às vezes, a pessoa que perdeu tudo oferece um abraço, um sorriso. A fé do povo brasileiro é inabalável e isso tem que ser respeitado, isso é pedra fundamental que mantém a gente de pé, vivo, no foco da busca do sonho. Para muitos a busca do sonho é algo mirabolante, gigante, ligado a coisas materiais, para outros, é sobreviver a mais um dia. No Brasil é assim, começa o dia, mas você não sabe se termina com ele, ou se ele termina com você.
Pequenina (feat. MC Hariel, Liniker, Maria Vilani e Jaques Morelenbaum)
“Pequenina” é aquele rap nosso de cada dia, mas pensando muito bem em quem seriam as pessoas a dar força para esse texto, para esse desabafo, para dividir com as pessoas do melhor jeito possível.
Ter a Liniker, expressão máxima de pureza na arte musical, de se esparramar toda, de fazer com que todos beijem seu coração quando está no palco, é uma honra muito grande para mim. E que honra foi quando eu mostrei o som para ela, que é uma música especial que fala muito da minha mãe. É como se você estivesse na nossa cozinha trocando ideia em 1982 naquele barraco no Jardim das Imbuias. Ela poder participar desse disco muito me honrou. O Hariel participa comigo também da faixa, que é um MC e escritor extraordinário. Conheci ele há muito tempo, a gente trocou ideia e ele é de uma humildade extrema. Estourado agora, mas com a mesma humildade de 7 anos atrás, o mesmo sentimento, o mesmo carinho, o mesmo jeito de tratar as pessoas. Não é por acaso ele estar ali.
Tem a minha mãe na música, porque tem frases ali que tem que ser ela cantando. Só ela é a dona total do contexto que a canção tenta expressar, então ela tinha que estar ali. E é um jeito de eu ter minha mãe dentro de uma música comigo, uma coisa que nunca tinha acontecido antes. Para mim é muito importante minha mãe estar nesse disco, porque ela está em tudo, lógico, e não dá para separar a família do que você está fazendo.
Essa música fala da solidão da minha mãe e da revolta de crescer passando fome e de viver num sistema que, se não tiver dinheiro, vai morrer de fome.
E o arranjo é do Jaques Morelenbaum. A gente ligou para ele e explicou o porquê da música, por que a letra é tão importante para mim, e ele fez um arranjo cabuloso. E é muito louco, porque todas essas energias de histórias diferentes têm algo em comum: um acreditar na música, na força da música, de viver disso e com isso. E com jeito muito singelo e tradicional dos anos 90 de se pensar em como construir um rap.
Quem Planta Amor Aqui Vai Morrer (feat. Tropkillaz)
O título é “Quem Planta Amor Aqui Vai Morrer”, talvez seja autoexplicativo até.
Aprendendo A Sobreviver
Essa aí é… ai, Meu Pai do Céu. “E quem atira não tinha nada a ver com quem caía, quem sorri era só uma ovelha assassina, um segredo que você não guardaria. Aonde a mágoa faz morada, a gente morre todo dia.” Tem várias paradas aí também