O perfume da virgem ruiva que o escritor deflora a cada madrugada é o seu ringue e a sua lucidez

Diário Carioca

RAY CUNHA, DE BRASÍLIA – É recorrente jornalistas perguntarem a escritores por que escrevem. As respostas são infinitas. Algumas, tão elaboradas que se tornam incompreensíveis, objeto de análise psicológica. Contudo, o modo como os escritores se comportam no processo de trabalho é previsível. Costumam se levantar em torno das 5 horas e a dedicar boa parte da manhã trabalhando, geralmente sem que ninguém os paguem por isso.

Alguns chegam a levantar-se em um horário em que quase todos os demais jamais cogitaram em deixar a cama: às 3 horas. E em boa parte do dia, ou da noite, recarregam as baterias da criação praticando esporte, bebendo, ou, simplesmente, vagabundando. Outros, trabalham para pôr comida na mesa.

Os escritores iniciantes, ou pobres, ou que ainda não conseguiram ganhar nada com sua produção literária, fazem qualquer trabalho para pôr comida na mesa da família e manter a rotina de levantar de madrugada para escrever. São como viciados que mergulham em um vício apenas tolerado pela família.

É claro, há os casos dos escritores que se tornam grandes vendedores de livros, vendem milhões, ficam ricos e com eles a família, que, assim, passa a estimular o escritor, a quem antes desestimulavam, a se profissionalizar.

Já dá para notar uma coisa: escritores são incansáveis. Há aqueles que trabalham como jornalistas, passam o dia escrevendo matérias ou copidescando nas redações dos jornais, e ainda encontram substância, à noite, para a criação. Outros, além de escrever e fugir dos cobradores, são ainda matadores compulsivos de mulheres.

Matadores no bom sentido. Diz-se que Honoré de Balzac tanto escrevia compulsivamente quanto fornicava. Não podia passar sem escrever e fornicar. Escrevia como um condenado e recarregava a bateria da criação fornicando.  

Mas os escritores, estou certo disso, pouco estão querendo saber se contarão ou não com comida no almoço e mulher no jantar. Precisam escrever! E não escrevem com o estômago, embora um naco de carne quente seja sempre bem-vindo. William Faulkner disse que o escritor é aquele sujeito que não tem medo de saber o quanto aguenta sem comer.

O escritor é aquele que, entre o conforto e o sacerdócio da escrita, renuncia ao luxo e se entrega à criação como o padre se entrega à missa. O escritor é um escravo voluntário. Um viciado que não faz mal a ninguém. Apenas incomoda a quem possa entrevê-lo na sua solidão. O escritor é feio ou belo, doente ou tímido. Isso nada significa para ele.

O verdadeiro escritor, quando é pobre e tem que sustentar a família realizando qualquer trabalho, o faz sem perda de tempo, e não deixa escapar também qualquer oportunidade de escrever, mesmo que seja no intervalo entre uma pedreira e outra. Não perde tempo com coisa alguma. Apenas o que escreve é realmente importante, porque extrai luz da criação.

Se o que escreve não tem luz, ou se o escritor é mais importante do que o que escreve, então se trata de um impostor. O falso escritor nunca tem tempo para escrever. Tem tempo para tudo, menos para escrever. O falso escritor não gosta de escrever, detesta escrever, não quer enfrentar o papel em branco, não sabe escrever. Intitula-se escritor, ou se obriga a escrever algum chavão aqui, outro ali, porque o status de escritor lhe deu alguma vantagem, ou lhe proporciona prazer.

Os falsos escritores lutam para ser tratados como verdadeiros escritores, se locupletando com elogios que fariam corar o verdadeiro escritor.

E por que se escreve, então? Por que gastar o tempo com algo que geralmente não proporciona nem feijão com arroz, durante anos, ou décadas, ou a vida inteira? Os escritores sentem uma vontade insuportável de criar, de inventar histórias, de costurar personagens e lhes conceder vida.

Faulkner achava que o escritor classe A era conduzido por demônios. Hemingway pelejava laboriosamente sobre o papel em branco. É que mesmo conduzidos pelo diabo, ou pela angústia, seguiam um odor. Este odor, creio, é o perfume das virgens ruivas.

Os escritores, no ato da criação, seguem o odor do cio, irresistível como o perfume das virgens ruivas. Criar é como a queda no abismo do gozo, uma queda longa, interminável, sempre interrompida e reiniciada a cada poema, conto, romance, crônica, ensaio, verso, frase. Assim, o ato de criar é o perfume da virgem ruiva que ele deflora a cada madrugada. É o seu ringue e a sua luz

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