Com seu despretensioso livro de estreia, que começou a ser feito numa aula de faculdade para explicar sua identidade de gênero e sua sexualidade para os amigos, Maia Kobabe desencadeou um debate que incendiou os Estados Unidos. Gênero queer chegou ao Brasil no Mês da Visibilidade LGBTQIA+ em 2023 para qualificar o debate em torno da teoria de gênero e estimular o acesso de jovens brasileiros a narrativas escritas por pessoas LGBTQIA+.
“Não quero ser menina. Também não quero ser menino. Tudo o que eu quero é ser eu.”
Quando Maia Kobabe nasceu, no fim dos anos 1980, nas imediações de San Francisco, foi identificade como menina. Desencanada e hippie, sua família não parecia se preocupar muito com os códigos de gênero na educação dos filhos. Assim que passou a conviver com outras crianças, Maia notou que nada daquilo que teimava em encaixar seu corpo e personalidade no gênero feminino — roupas, brinquedos, gestos, pronomes — correspondia à sua autoimagem. Por que uma menina não pode nadar sem camiseta?
Na adolescência, Maia percebeu que o seu desejo também não seguia o roteiro-padrão das descobertas sexuais: sentia uma inexplicável atração por colegas andrógines e não conseguia ficar com ninguém. Esse e outros dilemas da adolescência — Maia não sabia por que “precisava” raspar os cabelinhos da perna ou usar maiô, sentia pânico diante da menstruação e das primeiras consultas no ginecologista, descobriu tardiamente seu gosto pela leitura (e logo depois se apaixonou pela literatura queer) — são narrados no livro em tom afetivo e sincero, que nos transporta para perto de Maia.
Maia saiu do armário duas vezes: primeiro, como bissexual, durante o ensino médio. Mais tarde, na faculdade, como assexual (alguém que não sente ou sente pouca atração sexual por outra pessoa, independentemente de gênero), queer e não binárie (que não se identifica com o gênero masculino nem com o feminino). Nesta HQ autobiográfica, Maia narra esse processo de questionamento dos padrões de gênero, transição e afirmação, até adotar o gênero queer — palavra que perdeu seu primeiro sentido, de “não convencional, excêntrico”, para abarcar inúmeras possibilidades.
Gênero queer percorre cada etapa dessa jornada ao som de David Bowie e One Direction, com muito Tolkien, Harry Potter e fanfics. Em meio a uma profusão de saborosas referências pop e nerds, acompanhamos a educação sentimental de ume jovem na Califórnia da virada do século, em um ambiente de liberdade nos costumes, efervescência cultural, curiosidade intelectual e profundas dúvidas sobre gênero e sexualidade — muitas delas, exatamente as mesmas que todes temos na adolescência.
Gênero queer se filia à linhagem das grandes graphic novels de não ficção de nossa época, como Maus, de Art Spiegelman, Persépolis, de Marjane Satrapi, e Fun Home, de Alison Bechdel — notáveis por sua capacidade de levar o leitor a uma jornada de conhecimento de um novo universo cultural por meio de uma narrativa magnética e vibrante.
Prêmios e boicotes
Desde sua publicação original, em 2020, o gibi de Maia Kobabe abriu cabeças, se tornou best-seller — as diferentes edições já lançadas superam os 100 mil exemplares vendidos — e recebeu prêmios: ganhou o Alex Award, concedido pela ALA, a Associação Norte-Americana de Bibliotecas, e foi finalista do Stonewall Book Award, que premia narrativas LGBTQIA+. Mas Gênero qeer também despertou a ira dos moralistas: em 2021 e 2022, foi o título mais ameaçado por movimentos de banimento de livros em bibliotecas nos Estados Unidos, segundo levantamento da ALA. O ano passado também registrou um aumento de 40% nos títulos sob ataque — 2.571 livros foram ameaçados, dos quais 40% tinham protagonistas negros e 20% debatiam questões raciais, segundo dados do PEN America, instituto que monitora ameaças à liberdade de expressão. O debate sobre gênero também está no foco dos movimentos de censura, e Gênero queer foi um dos alvos.
Em um artigo sobre seu livro, Maia conta que estava em casa em 23 de setembro de 2021 quando começou a receber notificações no celular. Havia sido marcade num vídeo do Instagram. “Parecia ser uma filmagem de uma reunião do conselho municipal, e uma mulher discursava com raiva diante de um suporte para ler livros. Não liguei o som. ‘Esses são os doentes que escrevem esses livros horrorosos’, alguém comentou ao marcar o meu perfil.” Um protesto de pais exigia o banimento de livros da biblioteca escolar local.
“Na manhã seguinte, acordei e vi vários e-mails de jornalistas da Associated Press e de agências de notícias de Washington.” O movimento de perseguição a seu livro — que havia sido lançado com tiragem modesta e sem alarde no ano anterior — tinha se alastrado pelo país e ainda não dá sinais de recuar.
Ex-bibliotecárie e professorie de quadrinhos para adolescentes, Maia se preocupa com a restrição de acesso de jovens como elu a livros fundamentais para compreenderem a si mesmes. “Não raro”, escreve Maia, “os jovens queer não têm opção senão procurar fora de casa e do sistema educacional as informações sobre quem são. Banir ou restringir livros queer em bibliotecas e escolas é como privar jovens queer de coletes salva-vidas, jovens que talvez ainda nem saibam quais palavras devem digitar no Google para descobrir mais sobre o seu próprio corpo, sua identidade e sua saúde.”
Símbolo de resistência
Num movimento de reação a essa onda de censura, Gênero queer acabou se tornando um símbolo da resistência de bibliotecáries e ativistas pela liberdade de expressão, que vêm adotando estratégias de guerrilha para garantir a jovens do interior dos Estados Unidos o acesso a narrativas LGBTQIA+. Bibliotecas improvisadas e clubes de leitura relâmpago surgem de um dia para o outro para furar a censura em pequenas localidades que tiveram suas bibliotecas escolares esvaziadas. Nesses espaços de leitura subversivos, Gênero queer faz parte do kit de sobrevivência.
O governador da Carolina do Sul, o republicano Henry McMaster, chegou a tachar o livro de “obsceno e pornográfico” e “provavelmente ilegal” — embora as poucas cenas de sexo do livro sejam retratadas sempre em chave afetiva e não tenham nenhum tipo de violência. O presidente Joe Biden chamou os movimentos pró-banimento de livros de “extremistas do Make America Great Again”. A ALA indica o livro para pessoas a partir dos 12 anos.
Sobre os banimentos, Maia afirmou, em ensaio publicado no site da NPR, a National Public Radio, que procura “encarar tudo isso, se não como um elogio, ao menos como uma espécie de confirmação da potência de minha obra”. Elu só reforçou seu compromisso de continuar escrevendo histórias centradas em personagens trans, queer e não binárias. “Tudo bem se alguns locais do país estão obcecados por censurar meu trabalho, mas me recuso a fazer o mesmo.”
Linguagem não binária
A pedido de Maia Kobabe, a tradução brasileira, de Clara Rellstab, dedicou um cuidado especial ao uso da linguagem não binária, isto é, sem o uso automático da flexão masculina — como na palavra “todes”, por exemplo.
A linguagem, afinal, é um dos temas principais do livro. Da insatisfação com o tratamento sistemático no feminino, ainda em sua infância, à descoberta do sistema anglófono de pronomes Spivak, que acabou adotando, Maia explica por que palavras erradas ou descuidadas podem ofender. Ao mesmo tempo, elu reconhece como é difícil mudar, na família, entre amigos e na sociedade, práticas tão enraizadas. A solução que encontra dá o tom geral de Gênero queer: corrigir e explicar, com paciência e generosidade, cada escorregão pronominal, para que a linguagem não binária seja de fato compreendida e utilizada no cotidiano por nós todes.
Mas como isso se aplica na tradução de uma história em quadrinhos? Se no inglês o sexismo se manifesta basicamente nos pronomes, nas línguas neolatinas a flexão de gênero recai também sobre artigos, adjetivos e substantivos, o que acrescenta algumas camadas de complexidade. Na falta de um sistema equivalente ao escolhido por Maia, o Spivak (no qual os pronomes he, she, his, him e her são substituídos por e, eim, eir), a revisão técnica da tradução, assinada por be rgb, tradutorie e editorie de livros, adotou em Gênero queer o sistema brasileiro elu/delu, o mais corrente na atualidade.
Nesse sistema, palavras que ganhariam a flexão “natural” no masculino recebem uma terminação neutra: “escritor” ou “escritora” viram “escritorie” (plural “escritories”), por exemplo, e os artigos “a” e “o”, que geralmente marcam o gênero, são substituídos por “u” e “e”, dependendo da palavra; por exemplo, no plural “os vizinhos” se tornam “us vizinhes”. A revisão também buscou evitar palavras masculinizantes, como “pais” para traduzir parents (ficou “minha família”).
O uso da flexão de gênero não binária na tradução acompanha o processo de descoberta de Maia, que é tratade como menina até o momento em que, já adulte, ume artiste queer abre seus olhos para um novo universo, simbolizado por seus novos pronomes. Ou seja, ninguém nasce sabendo linguagem não binária, nem mesmo Maia, mas podemos aprender. E, de certa forma, acabamos evoluindo nesse aprendizado junto com elu, ao longo da leitura.
O Brasil ainda está iniciando o debate sobre linguagem não binária nas escolas, na imprensa, na vida privada e no debate público. Gênero queer é uma leitura fundamental para quem se interessa pelo tema ou deseja entender melhor esse fenômeno linguístico. Vale observar que o portal jornalístico AzMina produziu um Manual para Uso de Linguagem Não Binária para uso de jornalistas: https://azmina.com.br/reportagens/manual-para-comunicacao-neutra/.
A HQ foi parcialmente financiada pelo programa de patronos da Tinta-da-China Brasil.
Gênero Queer — Memórias
Maia Kobabe
Cores: Phoebe Kobabe
Tradução: Clara Rellstab
Revisão técnica em linguagem não binária: be rgb
Editora Tinta-da-China Brasil
240 páginas | 14 x 21 | R$ 99,00 | Lançamento: 1º de junho de 2023