Comunidade surda e pessoas com deficiência cobram participação em pautas dos movimentos sociais

Diário Carioca
               Neste mês das mulheres, chamou atenção a participação do movimento surdo no ato do dia 8 de março em Garanhuns, no agreste de Pernambuco. Discursando na Língua Brasileira de Sinais (Libras), Dyega Alves, representante do coletivo, chamou as mulheres surdas à luta e afirmou: “Nós, surdas, também somos mulheres”.
São mulheres que morrem, que parem, que sofrem violência obstétrica e violência doméstica e não conseguem denunciar por falta de acessibilidade. “Ter uma representatividade nesses movimentos sociais faz toda diferença, por isso nosso movimento surdo estimula o empoderamento da mulher surda em busca de seus direitos e deveres dentro da sociedade”, disse Dyega em entrevista ao Brasil de Fato Pernambuco. 
Mas o chamado dela serve para os dois sentidos: se o Movimento Surdo Agreste esteve lá fortalecendo a mobilização feminista, quando a sociedade civil vai se somar à luta das pessoas surdas? Quando as pautas dessa população serão incorporadas pelo campo progressista?
O Movimento Surdo Agreste foi criado em agosto de 2021 nas redes sociais, em defesa dos direitos comunicacionais da pessoa surda através da acessibilidade em Libras. Desde então, o coletivo tem realizado oficinas, palestras e cursos voltados para o público surdo. Dyega conta que a associação ainda está em processo de regularização, mas tem apoio de grupos políticos tanto de esquerda, quanto de direita.
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Apesar dessa participação de partidos, a pesquisadora Viviane Sarmento, doutora em Educação, professora adjunta da Universidade Federal do Agreste de Pernambuco (UFAPE) e aliada da luta das pessoas surdas e com deficiência, observa que os movimentos populares costumeiramente não abrem espaço para esse público e nem acolhe suas demandas. 
Vale ressaltar que, apesar de a surdez não ser considerada pela comunidade uma deficiência, mas sim uma diferença cultural e linguística, os movimentos surdos e de PCDs acabam caminhando juntos em Pernambuco, uma vez que ambos lidam com os entraves do capacitismo.
“De maneira histórica, tanto a surdez quanto a deficiência têm sido compreendidas como uma problemática da área da saúde. São vistas como doença, questões que precisam ser corrigidas e sanadas. De forma geral, as pessoas são vistas a partir de um olhar sociológico, como gente, mas como pessoas que precisam ser reparadas. Isso impede que essas alianças sejam construídas de maneira ética, e vai reforçando de maneira muito cruel as assimetrias de poder”, afirma a especialista.


A pesquisadora Viviane Sarmento oralizou o discurso de Dyega Alves no 8M de Garanhuns / Giovana Revoredo

No lado das lutas populares, o que acontece, segundo Viviane, é que, por entenderem que são pessoas que precisam ser reparadas, não sabem como lidar com elas e esperam um “manual de instruções”.
“Tem-se medo de errar as expressões, de ser capacitistas. Mas estão sendo capacitistas justamente quando pensam que tem que ter uma fórmula e não têm coragem de perguntar. Não existe ‘uma forma de como lidar com a pessoa’, é até cruel pensar assim. Até desumaniza, você entende ela como laudo, um parecer, que precisa de uma especialidade para saber como lidar”, elabora. 
Ela explica ainda que a ideia do manual se relaciona fortemente com a falta de convivência. “E por que as pessoas surdas e com deficiência não fazem parte da nossa convivência?”, questiona. Essa concepção médica da surdez e das deficiências, aliada à postura reticente, acaba criando um distanciamento ainda maior entre esse público e movimentos populares.
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A consequência disso é que vai ganhando força a direita, campo em que esse entendimento médico é trabalhado a partir de uma ótica caritativa. E assim, o governo do presidente Jair Bolsonaro (PL) vai conquistando um espaço grande na comunidade surda. 
“Nem todo mundo tem essa formação política, de consciência de classe. Os surdos são uma população, em que todos os lugares que chega, há primeiro um entrave linguístico. E de repente é eleito um presidente cuja primeira dama faz um discurso em Libras, usa sua língua. É a primeira vez que uma autoridade coloca em todos os discursos um intérprete de Libras. Com certeza tem muita gente surda aliada nas posições e nas construções do Governo Bolsonaro, principalmente na figura de Michelle Bolsonaro”, coloca.
O Movimento Surdo Agreste, por exemplo, percebe que a presença do profissional Tradutor Intérprete de Libras (TILS) nos comunicados oficiais do Governo Bolsonaro possibilitou uma ampliação da acessibilidade comunicacional em Libras. Dyega Aves, no entanto, faz ressalvas: “O governo ainda precisa promover ações específicas para a comunidade surda”, defende.
Cavalo de troia esconde retrocessos
Ao mesmo tempo em que o Governo Bolsonaro faz acenos para a comunidade surda e de pessoas com deficiência (PCDs), ele tenta implementar políticas públicas que podem representar retrocessos de décadas de conquistas da militância. É o caso da Política Nacional de Educação Especial: Equitativa, Inclusiva e com Aprendizado ao Longo da Vida, instituída pelo Decreto 10.502 em 2020 e embargada pelo Supremo Tribunal Federal (STF) no mesmo ano. 
O projeto previa, por exemplo, a reabertura de “escolas especiais” que atendessem exclusivamente estudantes com deficiência; e deixava a cargo da família a escolha de matricular a criança ou adolescente em uma escola especial ou inclusiva.
Viviane Sarmento desaprova a proposta, uma vez que tais medidas poderiam afastar esses jovens do ambiente escolar. “As escolas inclusivas, mesmo sendo obrigadas a não rejeitar a matrícula de pessoas PCDs, rejeitam até hoje”, levanta.
A pesquisadora também tece duras críticas às escolas especiais “Nem escolas deveriam se chamar. Primeiro porque não têm curricularização; e segundo, porque, por isso, as pessoas com deficiência nem vestibular podem fazer. Se for aliar isso em todas interseccionalidades, como fome, gênero, miséria, isso termina tendo um retorno a uma ideia de escola [especial] que mais funcionava como um depósito dessas pessoas”, avaliou.


Política Nacional de Educação Especial proposta pelo Governo Bolsonaro representa retrocessos / ANDES-SN

O único ponto que Viviane coloca como positivo é o atendimento de uma demanda da comunidade surda: a criação da escola bilíngue para surdo. “É uma uma escola em que vai ser realizado todo o processo de escolarização utilizando como intermédio a língua de sinais. É diferente das escolas inclusivas, onde a educação é feita em português com língua de sinais”, fala.
Fora a implementação dessa política nacional, o Governo Federal já teve outros posicionamentos agressivos contra a população surda e PCD, a exemplo da fala do ex-ministro da Educação Milton Ribeiro em entrevista à programa da TV Brasil em agosto do ano passado. Na ocasião, ele falou que a inclusão (ou "inclusivismo", como se referiu) de estudantes com deficiência nas salas de aula atrapalhava o aprendizado de outros alunos.
Além disso, desde que assumiu a presidência, Bolsonaro tentou quatro vezes (sem sucesso) flexibilizar a Lei de Cotas, que obriga empresas com cem ou mais funcionários a destinar 2% a 5% das vagas para PCDs. 
Como o campo progressista pode acolher as pautas 
Ao passo que os direitos conquistados estão constantemente ameaçados pelo Governo Federal, o assunto não é muito abordado nos espaços de esquerda. É o que percebe Natália Rosa, mulher com deficiência física e militante do Coletivo Hellen Keller e da Marcha Mundial das Mulheres. “Eu vejo o campo progressista pouco debatendo isso, pouco levando ao debate até mesmo esses ataques. Falta um pouco de aprofundamento nesse sentido”, diz.
Na sua visão, para que a luta popular abarque mais adequadamente essas pautas, é necessário chamar o público PCD e surdo para perto nos debates, inclusive, interseccionais.
“A gente precisa das pessoas do campo progressista que apoiem a gente e ajudem a gente a levar essas pautas cada vez mais para os debates feministas, antirracistas, para os debates anti LGBTQIA+fobia. A gente precisa ocupar esse espaço também, e não ficar só no debate de acessibilidade, de rampa e corrimão, porque isso já deveria ter sido garantido a todos há muitos anos. É 2022 e a gente ainda está falando disso, pautar as pessoas com deficiência só com acessibbilidade é muito pouco. Precisa aprofundar esse debate”, defende.
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Nesse sentido, para promover a participação das pessoas surdas e com deficiência nesses debates, Viviane Sarmento aconselha aos movimentos populares ouvir o que dizem essas populações e conviver com elas.
"Descaracterizar a ideia de ajuda e de falsa solidariedade, do neoliberalismo, porque vai reforçar a assimetria de poder entre quem supostamente vale mais (pessoas sem deficiência e não surdas) e menos (PCDs e surdos). Investir na ideia de que andar no mesmo lado da trincheira significa que as pautas se revezam, e não que esse campo está ajudando ou incluindo o outro. Seria o rompimento com essa ideia assistencialista”, detalha.
Em termos de estratégias e estrutura para abrir espaço para a participação dessas pessoas na luta popular, a especialista fala no fomento à formação política. “Não existe iniciativa do campo progressista de fazer formação política com essa população. E não uma formação política com acessibilidade, mas uma formação política com as principais demandas dessa população”, sugere.
        Fonte:  BdF Pernambuco
   Edição: Vanessa Gonzaga


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