A Corte Interamericana de Direitos Humanos vai julgar a denúncia contra o Brasil por sistemáticas violações contra os quilombolas em torno da construção do Centro de Lançamento de Alcântara, na região metropolitana de São Luís (MA), projeto da Força Aérea Brasileira. A audiência será entre 26 e 27 de abril, na sessão itinerante da Corte na sede do Tribunal Constitucional do Chile, em Santiago. As sessões começam às 14h30 do horário do Chile (GMT -4 ou às 15h30 no horário de Brasília) na quarta-feira, e a partir das 9h (10h) na quinta-feira. Será a primeira vez que o Estado brasileiro será julgado por um caso envolvendo quilombolas. Também é o primeiro caso em que as Forças Armadas são confrontadas num tribunal internacional.
A sessão vai ser transmitida ao vivo nas mídias sociais tanto da Justiça Global quanto da Corte (inscreva-se aqui). O público também pode acompanhar a mobilização por meio da cobertura em tempo real nas mídias sociais sob a hashtag #AlcântaraÉQuilombola, impulsionada pela Coalizão Negra por Direitos.
A denúncia foi apresentada à Comissão Interamericana de Direitos Humanos em 2001 por representantes de comunidades quilombolas do Maranhão, o Movimento dos Atingidos para Base de Alcântara (MABE), a Justiça Global, a Sociedade Maranhense de Direitos Humanos (SMDH), a Federação dos Trabalhadores na Agricultura do Estado do Maranhão (FETAEMA), Sindicato dos Trabalhadores e Trabalhadoras Rurais de Alcântara (STTR) e a Defensoria Pública da União (DPU) – que entrou no caso em 2017. Ao longo de duas décadas de tramitação na CIDH, o governo brasileiro teve diversas oportunidades de reconhecer e reparar as violações, mas não o fez. Os Quilombos de Alcântara ainda não contam com títulos de propriedade coletiva sobre os seus territórios tradicionais. Em janeiro deste ano, o caso foi apresentado à Corte.
As violações denunciadas são decorrentes da instalação de uma base de lançamento de foguetes da Força Aérea Brasileira, bem como pela omissão do Estado brasileiro em conferir os títulos de propriedade definitiva para os quilombolas. Além das desapropriações e remoções compulsórias, a perda do território impactou o direito à cultura, alimentação adequada, livre circulação, educação, saúde, saneamento básico e transporte de uma centena de comunidades quilombolas.
Uma delegação de mais de vinte pessoas já desembarcou em Santiago do Chile para o processo, com lideranças e representantes de movimentos sociais locais – como o MABE, o STTR, o Movimento de Mulheres de Alcântara e a Associação do Território Étnico Quilombola de Alcântara – ATEQUILA e o Movimento de Mulheres Trabalhadoras de Alcântara (MOMTRA); além de representantes da ONG Justiça Global e da DPU. Um grupo de pesquisadores e especialistas que atuam como amicus curiae também está no local.
Resumo do caso
O projeto do Centro de Lançamento de Alcântara começou a ser elaborado ainda na década de 1970, durante a ditadura militar. Já na Redemocratização, entre 1986 e 1988, foram desapropriadas 312 famílias de 32 povoados de suas terras. Nenhum estudo de impacto sociocultural e ambiental ou processos de consulta e consentimento prévios foram realizados pelo Governo Federal ou Estadual, conforme preconiza a Convenção no 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), ratificada pelo Brasil em 2002 e entrou em vigor em 2003.
Nas sete agrovilas nas quais as comunidades foram reassentadas, elas sofreram uma alteração dos costumes e práticas atuais e são até os dias atuais privadas de condições adequadas de vida, com a falta de saneamento básico e de políticas públicas de educação, transporte e saúde, de liberdade perante o território e de organização social.
O pedido de titulação está em aberto antes mesmo da denúncia e o processo está pronto para assinatura do Executivo Federal desde 2008, sem, no entanto, qualquer sinalização de encaminhamento, o que compromete ainda mais a garantia das formas tradicionais de organização e vida. As comunidades foram certificadas pela Fundação Cultural Palmares em 2004 e identificadas e delimitadas pelo Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA) em 2008.
As famílias expulsas de seus territórios enfrentam até hoje os impactos nos sistemas alimentares e de renda. A terra das agrovilas não têm tamanho ou qualidade para agricultura e cultivo de alimentos fundamentais, como descreve a quilombola Maria Luzia Silva Diniz. Conhecida como Luzia do Marudá – nome do seu antigo povoado, ela foi removida em 1987 para uma das agrovilas.
“Foi muito difícil para nós. A Aeronáutica nos tirou da maior riqueza dos recursos naturais para nós e nos colocou aqui nessa área onde as terras eram improdutivas, não tinham condições nenhuma de sustentabilidade para as famílias. Não existia nem um pé de fruta e a pesca ficou muito distante. O povo vivia da pesca e da roça. A partir daí, nós passamos a conhecer a fome de perto. Antes, nós não tínhamos uma casa bonita de alvenaria. Nós tínhamos casas humildes, tapadas de taipa e cobertas de palha de coco de babaçu. Mas nós éramos felizes. Nossos filhos brincavam e eram felizes porque tinham o que comer, tinha rio bonito e água boa para beber. Ficou tudo para trás”, descreve Luzia do Marudá.
As comunidades também eram impedidas de acessar determinados lugares, como o território onde seus ancestrais foram enterrados e o litoral, o que compromete atividades de caça e pesca. Além disso, a definição arbitrária dos novos assentamentos (mediante sorteios) não respeitou as relações de vizinhança, os laços de amizade e de parentesco que fazem parte da organização social de território étnico. O governo brasileiro ainda reduziu o módulo rural de Alcântara de 35 para 15 hectares.
Até hoje, os filhos das famílias deslocadas para as agrovilas têm que dividir os pequenos lotes concedidos aos seus pais. Sem possibilidade concreta de sobrevivência, muitos jovens vão para os centros urbanos, principalmente para os bairros de Camboa, Liberdade e Vila Embratel da capital São Luís.
Morador da agrovila Espera, Inaldo Fautino Silva Diniz foi reassentado em 1988 e conta que uma das estratégias do governo foi a de incidir sobre a juventude quilombola para atuar no despejo. “Ainda muito jovem, no fim da década de 70, eu ouvia os mais velhos falando que viria um grande projeto para Alcântara. No início dos anos 80, isso se concretizou em um decreto de desapropriação que dizia que, mais cedo ou mais tarde, essas comunidades que viviam no litoral seriam transferidas. Por volta de 1982, chegaram os primeiros militares em Alcântara, recrutando [para treinamento em São Paulo] alguns jovens para se tornarem militares, com o pretexto de que iam mudar de vida. Mas o que ocorreu foi que eles foram chamados para convencer seus pais de que anos depois eles seriam transferidos”.
Já os grupos que permaneceram em seus territórios tradicionais estão desde então sob constante tensão e ameaças de novas expulsões para expansão da base aérea pelo litoral, com projetos planejados e/ou executados pelo Estado nos últimos anos, repetidamente alheios à população local. A situação gera uma enorme insegurança sobre o futuro das várias comunidades.
Elas ainda têm vivido limitações impostas pelo governo brasileiro à relação dos quilombolas de Alcântara com o meio ambiente, como a interdição da pesca em determinados períodos e a restrição na construção de novas casas em alguns espaços. Além disso, ainda hoje, os povoados atravessados pelo projeto espacial não têm nenhuma informação sobre possível poluição do ar ou sonora dos, mesmo que raros, lançamentos de foguetes.
“A atitude do governo brasileiro acabou privando os quilombolas alcantarenses de poderem até mesmo se relacionar com seus locais sagrados, cultuarem e zelarem seus ancestrais”, relatam integrantes do MABE.
Ao longo de duas décadas de tramitação no Sistema Interamericano, o governo brasileiro teve diversas oportunidades – inclusive provocadas pela CIDH – para reconhecer e reparar as violações. Porém, ao contrário, manteve a postura arbitrária, violenta e desrespeitosa contra as comunidades quilombolas de Alcântara, atestando o racismo institucional contra os afrodescendentes no Brasil.
Entre as violações mais recentes, destaca-se a ação arbitrária no território em 2008 levou as lideranças de Alcântara a denunciarem o Estado à OIT, por meio do Sindicato dos Trabalhadores Rurais, pelo mais uma vez não cumprir a Convenção 169 no Projeto Alcântara Cyclone Space – Acordo de Cooperação Tecnológica Brasil – Ucrânia. As empresas contratadas invadiram e depredaram roças das comunidades de Mamuna e Baracatatiua na tentativa de implantar outros três sítios de lançamento de aluguel.
Em 2019, o Acordo de Salvaguardas Tecnológicas firmado pelo governo de Jair Bolsonaro com os Estados Unidos, com finalidades comerciais, ignorou até mesmo a recomendação da Comissão Interamericana de Direitos Humanos feita na segunda audiência sobre o caso de realizar estudo e consulta prévias aos quilombolas.
(Conheça o “Texto base para o protocolo comunitário sobre Consulta e Consentimento Prévio e Informado (CCPLI) das comunidades do território étnico de Alcântara/MA”, de 2019).
No ano seguinte, em meio à pandemia de Covid-19, o Governo Bolsonaro determinou novas remoções para tal projeto – que afetariam ao menos 800 famílias, principalmente das comunidades de Mamuna e Canelatiua. O despejo, no entanto, foi suspenso pela justiça e, após o Senado dos EUA vetar o uso de dinheiro do país para a remoção das comunidades quilombolas, o Brasil revogou a resolução.
Às vésperas do julgamento, em 29/03, mais uma situação atesta o desinteresse dos governantes em seguir as diretrizes de direitos humanos com os povos quilombolas, alimentando o racismo na sociedade brasileira. Na véspera da audiência, houve tentativa truculenta de reintegração de posse da Comunidade de Vista Alegre, por agentes da aeronáutica e do batalhão de choque (veja nota dos movimentos locais). A ação é contestada pela Associação do Território Étnico Quilombola de Alcântara (ATEQUILA).
A cidade de Alcântara, na região metropolitana de São Luís, concentra a maior população quilombola do país, com mais de 17 mil pessoas, distribuídas em quase 200 comunidades. Mais de 150 já foram afetados pelo projeto. Uma das primeiras regiões do Brasil a receber negros escravizados da África, às vésperas da independência em 1822 o Maranhão tinha o maior percentual de pessoas escravizadas do Império, em torno de 55%. É a partir do início do século XIX que o registro dos quilombos na região de Alcântara, cujas primeiras ocorrências datam do início do século XVIII, aumentou significativamente.
Pedidos das peticionárias
A denúncia foi considerada admissível pela CIDH em 2006. No relatório de mérito emitido em 2020, após duas audiências (em 2008 e em 2019), a Comissão recomendou que fosse feita a titulação do território, a consulta prévia em relação ao acordo firmado junto aos Estados Unidos, a reparação financeira dos removidos compulsoriamente e um pedido de desculpas público. Nada disso foi cumprido até agora. Diante da
gravidade dos fatos, em janeiro de 2022, a Comissão Interamericana levou o caso à Corte.
No pedido apresentado, o grupo argumenta que o Estado brasileiro violou direitos e liberdades garantidos pelo Pacto de San José da Costa Rica, da Convenção Americana de Direitos Humanos, nos seguintes pontos:
- Artigos 8, 21 e 25, pela não titulação do território quilombola;
- Artigos 4, 16, 17, 21 e 22, pelos impactos nos direitos à associação, família, circulação, residência e à vida digna culturalmente adequada decorrentes da não titulação;
- Artigos 8, 15, 21, 22, 25 e 26, pelos deslocamentos forçados de parte das comunidades quilombolas de Alcântara e pelo não pagamento das indenizações devidas conforme o direito interno;
- Artigos 21 e 23, pela não garantia do direito à consulta e ao consentimento das comunidades quilombolas de Alcântara;
- Artigo 24, pela discriminação contra as comunidades quilombolas de Alcântara;
- Artigo 26, pela violação aos direitos à água, à alimentação, à moradia adequada, a um meio ambiente saudável e à participação na vida cultural das comunidades quilombolas de Alcântara;
Além disso, o grupo denuncia a violação do Artigo 13 do Protocolo Adicional à Convenção Americana em Matéria de Direitos, Econômicos, Sociais e Culturais, em relação ao artigo 1.1 da Convenção Americana sobre Direitos Humanos, pela não garantia do direito à educação das crianças das comunidades quilombolas de Alcântara.
Com base nisso, as representantes pedem à Corte a implementação das seguintes medidas de reparação:
- A titulação do território quilombola e a realização de um procedimento culturalmente adequado de consulta e consentimento prévio, livre e informado, bem como estudo de impacto ambiental, com base no Protocolo de Consulta Comunitário das Comunidades Quilombolas de Alcântara, desenvolvido em 2019, visando a realização de consulta retroativa sobre a decisão administrativa que determinou a redução, em 12.645 hectares, do território tradicional a ser titulado como propriedade coletiva, além da área de 8.713 hectares utilizada pelo Centro de Lançamento de Alcântara (CLA) e da área de 543 hectares utilizada pela Agência Espacial Brasileira (AEB);
- Além da publicização de eventual decisão condenatória do Estado brasileiro em jornais de grande circulação, através da publicação do seu resumo, e em páginas oficiais do governo, as Representantes entendem pertinente a realização de um pedido formal de desculpas em cerimônia a ser celebrada em Alcântara;
- Reparações pecuniárias de Danos Materiais e Imaterais às Comunidades Não Reassentadas, diante das evidências sobre as ameaças de novas apropriações de parte do território pelo Estado brasileiro, impactando ao menos 800 famílias, e considerando os efeitos negativos da ausência de proteção das terras e territórios, advinda da titulação, como o contexto abandono histórico, discriminação sistemática, indiferença e falta de presença do Estado. Como efeito, essas comunidades têm violados os seus direitos ao meio ambiente sadio, alimentação adequada, acesso à água, terra, moradia, direitos culturais.
- Reparações pecuniárias de Danos Materiais e Imateriais às Comunidades Reassentadas, perante o deslocamento abrupto imposto aos membros de 31 comunidades Quilombolas, e que passaram e se encontram em situação de deslocamento contínuo, nas agrovilas, além de situação de pobreza e privações causados pelas limitações drásticas de uso de seus meios tradicionais de subsistência;
- A determinação ao Estado Brasileiro de abster-se de praticar atos que possam levar a que agentes do próprio Estado ou de terceiros, agindo com o consentimento ou tolerância do Estado, possam efetuar deslocamentos de comunidades Quilombolas, a menos que o Estado obtenha consentimento prévio, livre e informado das referidas pessoas e até que a concessão do título de propriedade coletivo do território quilombola de Alcântara seja efetivada;
- A criação de um fundo de desenvolvimento comunitário que inclua um plano para o exercício dos direitos à alimentação, à água, ao meio ambiente sadio e à moradia em consulta e coordenação com as comunidades Quilombolas identificadas;