Para quilombolas, Censo 2022 fortalece a reivindicação por direitos

Diário Carioca

A divulgação dos dados do Censo Demográfico 2022 referente aos quilombolas nesta quinta-feira (27) é celebrada por lideranças de diferentes organizações e entidades. A expectativa é de que o levantamento contribua para retirar essas populações da invisibilidade e fortaleça reivindicações por garantia de direitos e acesso a políticas públicas. No entanto, ao mesmo tempo em que classificam o momento como “histórico”, essas organizações apontam questões que precisam ser melhoradas em futuros levantamentos.

Esta foi a primeira vez que um Censo Demográfico contabilizou a população quilombola. Segundo os dados, são 1.327.802 de quilombolas no país, o que corresponde a 0,65% da população brasileira. Os resultados também mostram que essa população está distribuída por 1.696 municípios.

A Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (Conaq) considera a divulgação deste recorte do Censo uma conquista do movimento quilombola. “Estamos muito felizes de vencermos essa etapa. Esperamos reconhecimento em todas as esferas, tanto municipal, como estadual, como federal. Diante de um dado oficial, esperamos que os diversos órgãos nos reconheçam e nos deem acesso às políticas públicas”, disse José Alex Borges, coordenador executivo da Conaq.

Ele aponta que houve dificuldades relacionadas a cortes de recursos financeiros e recursos humanos, dificultando a contagem nos diferentes territórios, mas destaca a importância do levantamento.

“É um instrumento legal. Nós temos inúmeros levantamentos feitos pelo movimento quilombola. Mas não é oficial. A partir de agora teremos esses números oficiais e poderemos cobrar dos governantes recursos e políticas públicas para nos atender”.

Censo

Recenseador do IBGE entrevista moradora da comunidade quilombola de Pedra Bonita, no Alto da Boa Vista – Tânia Rêgo/Agência Brasil

O Censo Demográfico é a única pesquisa domiciliar que vai a todos os municípios do país. As informações levantadas subsidiam a elaboração de políticas públicas e decisões relacionadas com a alocação de recursos financeiros. Embora o Brasil realize uma operação censitária a cada dez anos, esta é a primeira edição a incluir no questionário um quesito para identificar os quilombolas.

O Censo 2022 deveria ter sido realizado em 2020, mas foi adiado duas vezes: primeiro devido à pandemia de covid-19 e depois por adversidades orçamentárias.

Os primeiros resultados com os dados gerais da população foram apresentados no final do mês passado revelando um país com 203 milhões de residentes. A divulgação nesta quinta-feira (27) das informações referentes aos quilombolas já estava agendada desde a semana passada. No dia 7 de agosto, serão apresentados os resultados do levantamento dos residentes indígenas.

Invisibilidade

Morador do Quilombo do Cumbe, em Aracati (CE), o educador popular, João Luís Joventino do Nascimento avalia que o Censo deve tirar essas populações da invisibilidade. Em 2021, o município chegou a negar à sua comunidade o acesso prioritário à vacinação contra a covid-19, que era garantido pelo Plano Nacional de Imunização (PNI). Na época, a Defensoria Pública acionou a Justiça pelo reconhecimento do direito.

“Através do Censo, podemos ter um diagnóstico da situação de cada comunidade quilombola do Brasil. Vamos ter informação de quantos somos e como vivemos. O Censo também nos ajudará a silenciar gestões municipais que insistem em dizer que nós não somos quilombolas”, diz João Luís.

O educador espera também que a divulgação dos resultados possibilite um avanço das políticas públicas. “Especialmente no que diz respeito à questão fundiária, porque o acesso à terra e ao território é uma questão primordial. A luta pela terra e pelo território é a mãe de todas as lutas. Dela deriva a luta pela construção de escolas quilombolas, pela educação diferenciada, pela saúde, pela agricultura e pela soberania alimentar”.

Essa é também a aposta de Eulalia Ferreira da Silva, do Quilombo Pedra Bonita, encravado em um dos quatro setores do Parque Nacional da Tijuca, no Rio de Janeiro. No território fica a rampa de voo livre de onde turistas e adeptos de esportes radicais saltam de asa delta ou de parapente para apreciar uma visão única da capital fluminense antes de aterrissar na Praia de São Conrado. Mesmo estando localizada em uma capital, a comunidade ainda não tem energia elétrica.

“Foi super importante a chegada do IBGE no nosso quilombo. Eu fiquei muito emocionada em receber aqui. Acredito que junto com o IBGE, outros serviços públicos vêm a reboque como água, luz, saneamento básico, vacina, entre outros. Trata-se de reconhecimento. Eu existo, eu vivo aqui, eu defendo esse território. Meus pais defenderam esse território para ninguém invadir e para manter preservado. E nós não temos esse reconhecimento”, afirma Eulalia.

Nascida no Quilombo Kalunga, em Cavalcante (GO), a advogada Vercilene Dias também celebra o momento. “Sem saber quem são e onde estão, fica difícil especificar políticas públicas para uma população. Então é muito importante essa visibilização, ainda que não seja um número 100%”.

Assessora jurídica da Conaq, Vercilene pondera que se trata de um primeiro levantamento com algumas limitações e que é preciso discutir determinadas questões para as futuras pesquisas.

“O quesito quilombola só aparecia no questionário onde houvesse comunidades quilombolas. Em 2019, o IBGE fez um levantamento preliminar para saber a localização dessas comunidades. Em razão disso, muitos quilombolas que moram nas cidades ficaram sem ser contabilizados. Eu sou um exemplo. Hoje eu moro em Brasília. Para abrir o quesito quilombola, eu teria que estar na minha comunidade, na casa dos meus pais, no dia que a equipe do IBGE passou lá”, observou.

Desafios

No período colonial, os quilombos eram definidos como comunidades formadas por pessoas negras que resistiram à escravidão e haviam fugido. Embora esse conceito tenha sido reproduzido por muitos anos, houve nas últimas décadas um movimento em busca de uma redefinição a partir da perspectiva antropológica.

Hoje, diferentes pesquisadores observam que muitas dessas comunidades originais foram extintas ao longo do tempo, por pressões de diversas naturezas: sociais, culturais, demográficas, econômicas, etc. Essas populações que passaram por esse processo acabaram se dispersando para novos territórios, dando origem a outros arranjos comunitários.

No Dicionário do Patrimônio Cultural do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan), a definição do verbete quilombo é assinada pela antropóloga Beatriz Accioly Vaz. Segundo ela, houve uma apropriação do termo pelos movimentos sociais camponeses mobilizados e organizados em torno do fator étnico. Eles promoveram um rompimento com a definição do quilombo a partir de uma perspectiva “passadista”, abarcando a diversidade e a dinâmica dessas populações ao longo do tempo.

“Contemporaneamente, portanto, o termo quilombo não se refere a resíduos ou resquícios arqueológicos de ocupação temporal, ou de comprovação biológica. Também não se trata de grupos isolados ou de uma população estritamente homogênea. Da mesma forma, nem sempre foram constituídos a partir de movimentos insurrecionais ou rebelados, mas, sobretudo, consistem em grupos que desenvolveram práticas cotidianas de resistência na manutenção e reprodução de seus modos de vida característicos e na consolidação de um território próprio”.

Em entrevista à TV Brasil, o historiador e cientista político Wallace Moraes, professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro, avaliou que o cenário ainda é desafiador para a luta pelo reconhecimento dessas populações. “Ainda não há uma política concreta e efetiva para reconhecimento dos territórios quilombolas. Isso é mais do que urgente, inclusive por justiça para esses povos que resistiram à escravização”.

Segundo ele, o período recente foi de retrocesso. “Os quilombos existem desde quando existe escravização de corpos negros neste país. Ocorreu a escravização de africanos trazidos para cá para produzir riqueza para os colonialistas. Então grande parte dos negros se revoltaram e formaram quilombos. No século 20, houve algum reconhecimento desses quilombos enquanto legítimos. Mas nos últimos quatro anos, houve uma total paralisação do reconhecimento dessas comunidades em função da política estabelecida pelo governo anterior conduzido”.

*Ampliada às 10h27 com o último intertítulo Desafios

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