Philip C. Almond, The University of Queensland
A mais recente cinebiografia bíblica da Netflix, “Virgem Maria”, foi atacada nas redes sociais porque a personagem-título e seu marido José estão sendo interpretados por atores israelenses.
As críticas se baseiam no argumento de que Maria e José, e seu filho Jesus, um judeu nascido em Belém, eram, na verdade, palestinos. Alguns críticos do elenco da Netflix estão preocupados com a inadequação de atores israelenses interpretando personagens históricas que acreditam serem palestinos, enquanto palestinos contemporâneos estão sendo mortos por bombas israelenses.
O cineasta D.J. Caruso, diretor da série, explicou a escalação do elenco israelense como uma escolha deliberada: “Era importante para nós que Maria, junto com a maior parte do elenco principal, fosse selecionada de Israel para garantir a autenticidade”, disse ele.
A polêmica sobre a série reacende um debate antigo e ainda inconcluso entre historiadores sobre a real etnia de Jesus Cristo. Teria sido ele, bem como seus pais Maria e José, palestinos?
Belém é hoje uma cidade localizada na Cisjordânia, território palestino ocupado por Israel, cerca de dez quilômetros ao sul de Jerusalém. Portanto, a resposta curta é: sim, Jesus era palestino, pelo menos de acordo com a geopolítica moderna.
Mas também se pode argumentar que ele não era, porque, como judeu, nasceu em uma época em que a Palestina não existia como entidade política.
Paula Fredriksen, historiadora do cristianismo antigo, fez essa observação em março. No Washington Post, ela disse que as alegações de que Jesus era palestino são “um ato de apropriação cultural e política”.
Um homem judeu de Belém
De acordo com o Novo Testamento, Jesus nasceu por volta de 4-6 AEC durante o reinado de Herodes, o Grande, em Belém. Belém era localizada em uma área então conhecida pelos romanos como Judeia – a terra de Judá, então ocupada pelo povo judeu (os “judios”).
O historiador romano Tácito foi o primeiro a mencionar a existência de Jesus como um judio, fora do Novo Testamento, em seus Anais (115-120 d.C.).
Tácito conta a seus leitores que o imperador Nero culpou os cristãos pelo incêndio que destruiu Roma em 64 EC. Eles receberam esse nome, escreveu ele, em homenagem a (Jesus) “Christus”, que foi executado por Pôncio Pilatos quando ele era governador da “Judeia, a primeira fonte do mal”.
De acordo com o Antigo Testamento, as 12 tribos de Israel conquistaram Canaã (mais tarde conhecida como Palestina, depois Judeia, depois Palestina de novo e depois Israel) por volta de 1200 AEC. A tribo de Judá se estabeleceu na região ao sul de Jerusalém.
Isso fez de Jesus um judio (em hebraico, um Yehudi), de onde deriva a palavra inglesa “Jew” (judeu). Como judio, Jesus fazia parte da tradição religiosa judaica, que se concentrava no templo de Jerusalém, conhecido como segundo templo.
A longa história da “Palestina”
O nome “Palestina” para essa região, no entanto, também tem uma longa história. Ele apareceu pela primeira vez no século 5 AEC, nos escritos do historiador grego Heródoto.
Ele escreveu sobre um “distrito da Síria, chamado Palaistinê”, entre o Egito e a Fenícia, uma região antiga que corresponde ao Líbano moderno, com partes adjacentes da Síria e de Israel modernos. Portanto, a terra (ou parte dela) foi chamada de “Palestina” pelos gregos antes de ser chamada de “Judeia” pelos romanos.
O momento-chave na criação da Palestina foi logo após uma rebelião judaica contra o domínio romano na Judeia entre 132 e 135 EC, conhecida como a revolta de Bar Kokhba. Os judeus foram mortos, deslocados ou escravizados. Eles não retornariam à Palestina em grande número até depois da Segunda Guerra Mundial, quando o Estado judeu de Israel foi criado.
O imperador Adriano mudou o nome da província romana de “Judeia” para “Síria Palestina” em cerca de 138 EC. Essa mudança de nome eliminou o caráter judaico da região, dando a entender que ela era mais síria e grega do que judaica.
Podemos dizer que, a partir desse momento, Jesus era um palestino.
Sua identidade étnica como judeu e sua afiliação religiosa à religião dos judeus permaneciam as mesmas, mas sua identidade geográfica havia mudado. O judeu havia se tornado um palestino.
Naquela época, isso pouco importava. Afinal de contas, a Palestina era apenas outro nome para a Judeia.
Politização da “Palestina” e de “Israel”
Após a queda do Império Romano, as fronteiras da Palestina eram vagas e incertas. A “Palestina” não se referia a nenhuma identidade política específica, portanto, não era necessária uma determinação geográfica precisa.
Os cruzados preferiam “a Terra Santa” ou “o Reino de Jerusalém”. As fronteiras da Palestina permaneceram fluidas depois que ela se tornou parte do Império Otomano em 1516, até que o fim da Primeira Guerra Mundial pôs fim à dominação otomana da região.
Jerusalém foi capturada pelas forças britânicas e aliadas em dezembro de 1917. Em outubro de 1918, o restante da área foi ocupado pelos britânicos, que administrariam a Palestina até a data final de 1948. Em maio de 1948, depois que cerca de 750.000 pessoas que viviam em 77,8% das terras da então Palestina foram deslocadas, o moderno Estado de Israel foi declarado.
A identidade geográfica da Palestina voltou a ser crucial. A Palestina agora se tornaria um espaço geográfico limitado e determinado, definido contra a criação do novo Estado de Israel.
Esse novo Estado se baseou em sua identidade judaica original. Mas com seu novo nome, ele criou uma nova compreensão de si mesmo. Um novo tipo de judeu, um “israelense”, havia chegado ao local anteriormente conhecido como Judeia.
Os novos judeus “israelenses” se estabeleceram contra os habitantes anteriores, os “palestinos”. Eles limitaram os palestinos a um espaço na Faixa de Gaza e na Cisjordânia, no que os israelenses ainda consideravam a Terra Prometida dada a eles por Deus, de acordo com a Bíblia.
Por sua vez, os árabes da Palestina começaram a usar o termo “palestino” para afirmar o conceito nacionalista de um povo palestino e seu direito a um Estado independente.
Uma Humanidade comum
Quando a Judeia e a Palestina cobriam mais ou menos o mesmo espaço geográfico, Jesus podia ser tanto judeu quanto palestino. Naquela época, isso não importava.
Mas em um Oriente Médio moderno dividido em linhas binárias (entre judeus e árabes, judeus israelenses e muçulmanos ou cristãos palestinos), parece que ele não pode mais ser ambos.
Só Deus sabe o que Jesus acharia de tudo isso. Mas perceber que Jesus é palestino e judeu deveria nos fazer questionar a verdade e o valor dessas distinções binárias.
Afinal de contas, judeus, muçulmanos e cristãos acreditam que todos nós viemos de um par original de seres humanos: Adão e Eva.
Essa história nos leva a um reconhecimento de uma Humanidade comum – além das divisões arbitrárias e impermanentes de pessoas e lugares criadas pelas mudanças e sortes da História.
Philip C. Almond, Emeritus Professor in the History of Religious Thought, The University of Queensland
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