Ação no Supremo pede que leitos de hospitais privados passem ao SUS durante pandemia

Diário Carioca

Representantes do Psol entraram, nessa terça-feira (31), com uma ação no Supremo Tribunal Federal (STF) para determinar que o poder público passe a administrar, por meio do Sistema Único de Saúde (SUS), os bens e serviços do setor privado de saúde durante a pandemia de coronavírus no Brasil. Caso seja acatada, a medida valerá especialmente para as unidades de tratamento intensivo (UTIs).    

O pedido parte da premissa constitucional de que os governos federal, estaduais e municipais possuem o direito e o dever de requererem equipamentos, serviços e profissionais da rede privada de saúde para serem alocados no SUS, em momentos de calamidade pública, a exemplo da pandemia do novo coronavírus. Caso isso ocorra, o Estado deve indenizar o setor privado posteriormente.

Por meio da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (APDF 671), o PSol pede que o STF determine que União, estados, Distrito Federal e municípios “executem a requisição administrativa da totalidade dos bens e serviços de pessoas jurídicas e físicas relativos à assistência à saúde prestados em regime privado” diante de uma “eventual escassez de bens e serviços necessários ao atendimento do interesse público, em especial leitos em unidades de tratamento intensivo (UTI)”.

No pedido — que tem como relator o ministro Ricardo Lewandowski —, os advogados que assinam a ação afirmam que não se pode aguardar “por obviedade” a “falência do sistema público de saúde brasileiro” em decorrência da pandemia decorrente do novo coronavírus.

O que dizem os advogados?

Uma das advogadas que assinam a ação e vice-presidente da Comissão de Igualdade Racial da Ordem dos Advogados de São Paulo (OAB-SP), Thayná Yaredy afirma que os direitos à saúde, vida e igualdade são cláusulas pétreas da Constituição Federal. Diante desse primeiro arcabouço jurídico, os preceitos fundamentais são descumpridos quando há, na iniciativa privada, pouco mais da metade dos leitos das Unidades de Tratamento Intensivo (UTIs) sem ser utilizada por toda a população.

Ela explica que, além dos direitos básicos, há o reconhecimento de uma pandemia pela Organização Mundial da Saúde (OMS) e de calamidade pública pelos órgãos sanitários e médicos nacionais. Nesse estado, os direitos dos cidadãos se sobrepõem aos direitos privados. Isso significa que, “num estado de necessidade maior, que é o que está acontecendo, estados, municípios e a federação têm a obrigação e o direito de zelar pela saúde de seus cidadãos. Isso tem a ver também com a possibilidade de confisco de determinados bens”, afirma a advogada. 

A partir da ação, portanto, “a gente quer que a federação, a partir do seu presidente, compreenda que não tomar essa providência de universalização do uso da saúde é descumprir um preceito fundamental que está na Constituição.” Isso também “para que a gente tenha a oportunidade de não perder vidas por conta da privatização do direito ao acesso à saúde”, defende Yaredy. 

Na grande São Paulo, com uma liminar dada pela Justiça, a Prefeitura de Cotia se apropriou, na última sexta-feira (27), de 35 respiradores de uma empresa privada para serem utilizados nas UTIs do SUS. O município, que tem seis casos confirmados de coronavírus, se comprometeu a indenizar o particular após a pandemia. No mesmo dia, o governo estadual de São Paulo confiscou 500 mil máscaras da empresa 3M. A ação foi organizada pelas Secretarias de Estado da Saúde e de Governo, com o apoio da Polícia Civil.

Pedro Serrano, advogado que também subscreve a ação, afirma que esse é o “espírito da ação”: não deixar essa prerrogativa não apenas como um direito do poder público, mas como uma obrigação quando necessário

“É um poder excepcional que é dado ao poder público em situações de calamidade como a que nós enfrentamos. O objeto da ação é tornar isso obrigatório, quando necessário a proteger vidas da população pobre, ou seja, o poder público ser compelido a fazer isso”, afirma o advogado que também é professor de Direito Constitucional da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). 

Serrano avalia que o número de leitos proporcionais ao tamanho da população brasileira “não é tão ruim”. Pelo contrário: é maior do que o índice de países como Itália, Reino Unido e França. “O problema é que é mal distribuído geograficamente e socialmente. Então nós precisamos encontrar mecanismos de maior igualação e de utilizar melhor a totalidade dos recursos do sistema de saúde para enfrentar a pandemia.” 

Distribuição de leitos no Brasil

De acordo com levantamento realizado pela Agência Estado no Cadastro Nacional de Estabelecimentos de Saúde (CNES), do portal Datasus, o SUS oferece somente 44% dos leitos de UTIs existentes em todo o país. Essa parcela é utilizada por 75% da população. O restante, cerca de 25% dos indivíduos brasileiros, tem acesso aos leitos da rede privada de saúde, que somam 56% do total de leitos. O estudo considerou os leitos de UTI adultos e pediátricos, excluindo os neonatais.

A proporção da totalidade de leitos à população brasileira está de acordo com a recomendação da Organização Mundial da Saúde (OMS), que é de um a três leitos a cada 10 mil habitantes. No Brasil, esse índice se aproxima de dois para cada 10 mil. “Três quartos da população tem disponível somente 44% dos leitos de UTI que são dentro do SUS. Os outros 56% estão na iniciativa privada disponíveis para apenas 1/4 da população. Isso é algo que infringe, dentro de um estado de calamidade pública relacionada à saúde, o direito de acesso a toda a população”, afirma Thayná Yaredy. 

Ela destaca que a questão também atinge o debate racial no Brasil, uma vez que a distribuição de leitos pelo país mostra que “nem todas as vidas são iguais dentro desse sistema de manutenção do acesso ao básico na sociedade brasileira”. 

“A gente tem que lembrar, quando a gente fala sobre isso, que os pobres no Brasil são negros. Então essa ação está para além de somente responder à demanda que se relaciona ao coronavírus, está em fazer algo e levar em consideração que a vida das pessoas pobres que não têm acesso a um convênio médico importam.” 

O que a legislação diz?

A ação do PSol se baseia no artigo 5º e inciso 25 da Constituição Federal, cujo conteúdo estabelece que, “no caso de iminente perigo público, a autoridade competente poderá usar de propriedade particular, assegurada ao proprietário indenização ulterior, se houver dano”. O mesmo é estabelecido pela Lei nº 8.080, de 1990.

Segundo o texto da ação, o inciso 2 do artigo 23 da Constituição determina que “compete a todos os entes da federação, nas suas respectivas esferas administrativas, intervir na propriedade privada, de maneira razoável e proporcional, a fim de concretizar o direito fundamental à saúde, à vida e à igualdade”. 

A ação realizada pela Prefeitura de Cotia, por exemplo, foi determinada com base na Lei 13.979, de fevereiro deste ano, que estabelece medidas no combate ao coronavírus: “Para enfrentamento da emergência de saúde pública de importância internacional decorrente do coronavírus, poderão ser adotadas, entre outras, as seguintes medidas: requisição de bens e serviços de pessoas naturais e jurídicas, hipótese em que será garantido o pagamento posterior de indenização justa”.

Medidas similares na Europa e nos EUA

Iniciativas semelhantes foram adotadas em outros países, como Itália, Espanha e Estados Unidos. No primeiro, houve a estatização provisória de fábricas de remédios. Na Espanha, dos hospitais. Nos EUA, o presidente Donald Trump recorreu ao Ato de Produção de Defesa para obrigar que as empresas Ford e GM produzam imediatamente respiradores artificiais. “Nós não estamos inventando nada”, defende Pedro Serrano.

Edição: Camila Maciel


Share This Article
Follow:
Equipe de jornalistas, colaboradores e estagiários do Jornal DC - Diário Carioca