Um estudo da Defensoria Pública do Rio de Janeiro (DPRJ) sobre registros de ocorrência policial e de processos judiciais envolvendo acusações de prática de crime de furto constatou que, em grande parte dos casos, naqueles referentes a artigos de primeira necessidade, quando levados a julgamento, não houve observância do princípio da insignificância pelos juízes. O crime de furto é previsto no Artigo 155 do Código Penal.
A defensoria lançou, nesta quinta-feira (1º), o Relatório sobre Aplicação do Princípio da Insignificância no Caso de Furto de Itens Alimentícios e de Higiene no Rio de Janeiro.
Segundo o relatório, foram levantados 4.175 registros de prática do crime de furto ocorridos durante a pandemia da covid-19, de 2020 e até o primeiro semestre de 2021, período entendido como de aumento da vulnerabilidade e de insegurança alimentar. Dados do Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no Contexto da Pandemia da Covid-19 no Brasil mostraram que cerca de 19 milhões de pessoas viviam em situação de fome no país em 2020, contra 10,3 milhões, em 2018. Isso significa que, em dois anos, ocorreu aumento de 84,4%.
Os registros foram classificados de acordo com o tipo de objeto furtado e o preço a ele atribuído, tendo por base o salário mínimo da época, que era de R$ 1.045 em 2020 e de R$ 1.100 no ano seguinte. Os dados têm como fonte as audiências de custódia e os processos judiciais abertos no período e que tiveram atuação de defensores públicos. O maior número de casos foi de furto de metal, como fios de cobre, tampas de bueiro e grades, com 1.073 prisões. Em seguida, foram analisados registros relativos ao furto de alimentos, bebidas e artigos de higiene: 943, em que os defensores públicos têm maior certeza da destinação.
Insignificância Em entrevista à Agência Brasil, a subcoordenadora de Defesa Criminal da DPRJ, Isabel Schprejer, informou que o princípio da insignificância não existe na lei escrita brasileira, embora a existência desse conceito esteja consolidada na jurisprudência, inclusive pelo Supremo Tribunal Federal (STF) e pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ). Segundo o estudo da DPRJ, houve decisões que não aplicaram o princípio da insignificância por não existir na lei. “Algumas decisões entenderam que a ausência de previsão legal afasta o princípio de insignificância”, disse Isabel.
De acordo com o trabalho, os casos mais frequentes foram os de furtos de alimentos, bebidas ou itens de higiene pessoal no estado que envolveram valores de até 10% do salário mínimo, embora haja decisões que englobam até 20% do mínimo. Uma em cada quatro (25,6%) ocorrências por furto de alimentos, bebidas ou itens de higiene pessoal envolveu valores de até 10% do salário mínimo. Nas audiências de custódia, a maioria das ocorrências resultou em liberdade provisória, mas, quando os casos foram julgados, 32% dos acusados foram condenadas, com penas de até três anos e meio. O princípio da insignificância foi reconhecido e aplicado em 55% das sentenças.
Para Isabel Schprejer, a questão da reincidência ou de anotações criminais anteriores, com processos em andamento, às vezes já é suficiente para os juízes condenarem, mesmo que o valor do produto furtado seja baixo ou até irrisório. “A conclusão da pesquisa foi que a reincidência, ou os antecedentes criminais, têm condenação e são, realmente, o maior empecilho para o reconhecimento do princípio da insignificância.”
Segundo a defensora, isso é contraditório, por se tratar de pessoas em situação de vulnerabilidade e que têm mais chance de cometer furtos de forma reiterada. “Acaba não tendo uma atenção para essas pessoas no direito penal. Não se vê o quadro total da vida daquela pessoa e o que está acontecendo. Sabemos que existe uma situação de insegurança alimentar muito grande, especialmente depois da pandemia. Por isso, quisemos fazer esse estudo de 2020 até o primeiro semestre de 2021.”
Reconhecimento O objetivo do estudo é chamar a atenção para a necessidade de reconhecimento do princípio da insignificância nos casos de furto de artigos de primeira necessidade. “Porque a Defensoria não tinha ainda uma pesquisa sobre o princípio da insignificância, porque muitos dos processos que tramitam hoje versam sobre furto e, muitos sobre furto de alimentos, bebidas e artigos de higiene, que são de pequeno valor”, reforçou Isabel.
Do total de 943 ocorrências classificadas como furto de alimentos, bebidas e itens de higiene, 241 correspondiam a objetos com valor de até R$ 110 (25,6%). Desses, 83,8% dos acusados (202) receberam liberdade provisória, com ou sem fiança, na audiência de custódia ou após a análise do flagrante, durante o período que tais audiências ficaram suspensas. Das 39 pessoas mantidas presas nesse período, oito tiveram a preventiva revista ao longo do processo. Dos 943 registros de furto de artigos de primeira necessidade examinados, 43% (159 casos) tinham preços equivalentes a até 20% do salário mínimo. Nos casos em que o bem furtado valia entre 10% e 20% do mínimo, houve condenação em 57% dos processos, com penas variando entre quatro meses e seis anos de reclusão.
“Os furtos, na maioria das vezes, ficam nessa faixa, com valor baixo, e o que a gente vê é que é de material de subsistência mesmo”. Observaram-se também casos de pessoas que furtaram caixas de bombons para revenda, com valor auferido destinado para suprir necessidades básicas.” Isabel Schprejer considerou que seria interessante encaminhar o relatório para o Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro (TJRJ). “Pode ser interessante enviarmos, sim.”
No estudo, a Defensoria Pública analisou os casos até a sentença, ou primeira fase, mas não os recursos impetrados, porque a ideia era ver o comportamento dos juízes de primeiro grau. Isabel admitiu que, em outra etapa, a pesquisa pode vir a abranger o que houve depois com esses casos. A defensora disse acreditar que muitas penas de seis anos tenham sido reformadas. No caso da pena de seis anos, ela destacou que o acusado era reincidente ou tinha antecedentes, e as duas razões parecem ser suficientes, ao olhar dos juízes, para que não se aplique o princípio da insignificância, nem se atribuam penas alternativas, como a prestação de serviços à comunidade.
“Na verdade, não é feita uma análise global do caso da pessoa; ela não é encaminhada para a assistência social, por exemplo. E a pena é aplicada. Não é vista a situação da pessoa, por que está cometendo vários furtos em supermercados e furtos de pequeno valor? É para alimentar os filhos? Isso não é analisado quando a pessoa responde a um processo penal”, destacou a subcoordenadora de Defesa Criminal da DPRJ. A motivação não tem grande ênfase na visão dos julgadores, concluiu.