A vitória eleitoral de Luiz Inácio Lula da Silva em 30 de outubro do ano passado, que o levou a assumir pela terceira vez como presidente do Brasil, veio com a expectativa de uma revisão nas relações entre Brasília e Pequim. O Brasil ainda enfrenta uma dura crise econômica, política, social e ambiental. A luta contra a pobreza, a retomada do crescimento econômico com redistribuição de renda, a reindustrialização do país e a reversão dos danos ambientais são tarefas urgentes, que exigirão do novo governo uma destreza a nível nacional e internacional sem precedentes. A parceria econômica entre Brasil e China, que avançou muito nas últimas duas décadas, pode ser uma das chaves para reverter a crise que o Brasil enfrenta. Mas alguns desafios terão de ser enfrentados com diplomacia e planejamento estratégico.
Apesar dos “insultos” dirigidos pelo governo do ex-presidente Jair Bolsonaro contra a China, especialmente durante a pandemia, e do inevitável distanciamento dos dois países nas suas relações diplomáticas, o comércio bilateral entre Brasil e China aumentou. Em 2021, as trocas bilaterais entre os países chegaram ao valor de 135,4 bilhões de dólares, com o Brasil tendo um superávit de 40 bilhões de dólares com a China, números que só são superados pela região de Taiwan e outros dois países; Austrália e Coreia do Sul. A China tem sido a maior parceira comercial do Brasil desde 2009, respondendo por quase o dobro do volume comercial que o Brasil importou de seu segundo maior parceiro em 2021, os Estados Unidos (70,5 bilhões de dólares), com o qual registrou déficit de 8,3 bilhões de dólares.
Uma relação comercial lucrativa, mas desequilibrada
A cesta de exportações do Brasil, no entanto, é vulnerável a longo prazo: ela não é muito diversificada, e é baseada em produtos de pouco valor agregado. Os quatro principais produtos que o País exporta (minério de ferro, soja, petróleo bruto e proteínas animais) foram responsáveis por 87,7% do total de exportações para a China em 2021. Enquanto isso, as importações dos produtos chineses pelo Brasil são altamente diversificadas, com uma predominância de produtos manufaturados e com um alto grau de maturidade tecnológica. O principal item de importação da China ao Brasil, por exemplo (equipamentos de telecomunicação) significou somente 5,9% das importações totais.
O setor brasileiro de commodities, que é um componente importante da economia, representou 68,3% das exportações do Brasil na primeira metade de 2022 e contribuiu por anos para o aumento das reservas internacionais. Por outro lado, o setor de commodities tem uma alta concentração de riqueza, tem baixa taxação, gera poucos empregos e de baixa qualificação, está sujeito a mudanças cíclicas de preços e, em muitos casos, causa danos ao meio ambiente que devem ser melhor controlados pelo Estado. Nesse sentido, a iniciativa anunciada pela COFCO International – a maior compradora chinesa de comida produzida no Brasil – para monitorar e proibir a compra de soja plantada em áreas de desmatamento ilegal no Brasil a partir de 2023 foi importante.
Mas isso também requer que o Estado brasileiro – que nos últimos anos notoriamente incentivou o desmatamento e a invasão de reservas indígenas – garanta a efetividade da iniciativa. A China precisa dos recursos naturais do Brasil para seu desenvolvimento, e o Brasil precisa do mercado chinês para seus commodities. Mas, a médio e longo prazo, o Brasil precisará buscar um maior equilíbrio na sua agenda comercial se quiser construir uma economia sólida. Lembremos que em 2000, o principal produto de exportação brasileiro eram os aviões da Embraer, enquanto em 2021 os principais itens de exportação foram minério de ferro e soja. Esse é só um dos muitos sintomas da desindustrialização crônica.
Investir é necessário, mas diversificar também
Os investimentos chineses no Brasil têm um perfil similar às exportações: robustos, mas não muito diversificados. Em 2021, o Brasil recebeu a maior parte dos investimentos chineses em todo o mundo, totalizando 5,9 bilhões de dólares (13,6% do total global). Entre 2005 e 2021, o Brasil foi o quarto maior receptor de investimentos chineses (4,8% do total), atrás somente dos EUA (14,3%), Austrália (7,8%) e o Reino Unido (7,4%). Esses investimentos da China resultaram em um aporte fundamental de recursos para a economia brasileira, mas não vieram sem um conjunto de questões. De 2007 a 2021, 76,4% dos investimentos chineses estiveram concentrados no setor energético (eletricidade e extração de petróleo e gás), enquanto só 5,5% foram para a indústria e 4,5% foram para projetos de infraestrutura; entre outras, algumas das maiores necessidades da economia brasileira.
O setor de eletricidade foi o maior destino dos investimentos chineses (45,5% do total), mas parte disso correspondeu à compra de companhias estatais brasileiras por estatais chinesas. Em 2017, a companhia chinesa State Grid adquiriu o controle acionário da CPFL Energia, uma companhia estatal de São Paulo, e em 2021 a CPFL Energia comprou o controle da CEEE-Transmissão, estatal do Rio Grande do Sul. Para o Brasil, não foram bons negócios, que demonstraram a irresponsabilidade dos governos estaduais neoliberais do Partido da Social Democracia Brasileira (PSDB), que privatizaram recursos públicos estratégicos. A China – que nunca venderia uma companhia energética estatal para estrangeiros – visou seus próprios interesses e aproveitou uma oportunidade de negócio oferecida pelo mercado. Não foi um pacote de privatizações imposto pelo Fundo Monetário Internacional. Mas Pequim estaria disposta a aceitar outros modelos de investimento que trouxessem mais benefícios para os dois países?
O exemplo dos hermanos do sul
Desde 2021, Buenos Aires e Pequim entraram em uma série de acordos de investimentos estratégicos. Em fevereiro de 2022, a Argentina passou a fazer parte da Iniciativa Cinturão e Rota, com a expectativa de atrair 23 bilhões de dólares em investimentos chineses para o país. Antes disso, outros investimentos e projetos realizados por companhias chinesas incluíram a reforma do sistema ferroviário argentino (4,69 bilhões de dólares) e investimentos volumosos no setor elétrico, como: 1) a expansão do Parque Cauchari, a maior planta de energia solar da América Latina, que originalmente foi uma parceria sino-argentina; 2) a construção do complexo hidroelétrico “Kirchner-Cepernic” na Patagônia (ao custo de mais de 4 bilhões de dólares); e 3) a construção da planta nuclear “Atucha III” (ao custo de 8,3 bilhões de dólares), cujo financiamento tem um período de carência de aproximadamente oito anos e, o mais importante, prevê a transferência da tecnologia nuclear chinesa Hualong – dominada em 2021 – para o estado argentino, que controlará a usina.
O Brasil pode propor parcerias semelhantes às da Argentina, tão ou até mais estratégicas, com benefícios mútuos. Por que não propor a troca de commodities (petróleo e gás) por infraestrutura e tecnologia com a China, como países como o Irã já propuseram? Ou a formação de mais joint ventures sino-brasileiras – que receberam apenas 6% dos investimentos chineses (2005-2020), enquanto as fusões e aquisições receberam 70% – que incluam a transferência de tecnologia para o Brasil?
O Brasil precisará de um esforço gigantesco para reindustrializar sua economia em vários níveis, como investimento em pesquisa e desenvolvimento, formação de mão de obra qualificada, financiamento e transferência de tecnologia. Nenhum outro país tem, como a China, condições financeiras, industriais e tecnológicas para cooperar com o Brasil em inúmeros setores promissores, como veículos elétricos, tecnologia da informação, 5G, energia renovável, indústria aeroespacial, biomedicina e semicondutores. Cabe ao Brasil propor um diálogo estratégico de alto nível com a China, que reafirmou no relatório do 20º Congresso Nacional do Partido Comunista da China que está empenhada em ajudar a acelerar o desenvolvimento dos países do Sul Global. “A China está preparada para investir mais recursos na cooperação global para o desenvolvimento. Está empenhada em reduzir o fosso Norte-Sul e apoiar e ajudar outros países em desenvolvimento na aceleração do desenvolvimento”, afirmou o presidente chinês Xi Jinping durante o Congresso.Biografia do autor: Este artigo foi produzido pela Globetrotter e traduzido por Pedro Marin para a Revista Opera. Marco Fernandes é pesquisador no Instituto Tricontinental para Pesquisa Social. Ele é co-editor do Dongsheng e membro do coletivo No Cold War. Ele vive em Pequim